Vergílio Ferreira - Jornal "A Guarda" (25.02.2016)
A memória das palavras
Vergílio Ferreira II – “Aparição”
“Sento-me nesta sala vazia e relembro.” Assim começa e acaba a narrativa circular desse romance marcante na obra de Vergílio Ferreira: a Aparição. É, para mim, o seu romance mais atrativo e mais perfeito na meditação sobre o ser humano. Outros há mais expressivos de toda a sua escrita. Uma das temáticas gratas ao autor é o simbolismo que imprime à presença da música. Releio:
“Oiço o Nocturno nº 20, de Chopin e recordo-te, Cristina, na tua mágica aparição: tocavas Chopin esforçando-te por chegar aos pedais do piano, mas isso não perturbava a tua fantástica personagem. “Toca, Cristina; Cristina, toca”. Assim se resume foneticamente a tua aparição em Aparição. E vemos-te na tua ingenuidade de 7 anos, madura na tua interpretação, presságio do teu destino trágico. E o simbolismo do teu nome: a sua relação com Cristo. Daí o Nocturno. (E de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas mãos. cap. III) E cais tragicamente numa curva da estrada, regressando do carnaval no Redondo. Porquê? Para expiar os pecados dos outros? Para seres uma revelação do eu inocente e pleno na tua perfeição da música? Porque afinal a música era a tua motivação para existires. Por isso continuavas a tocar depois de morta nas dobras do lençol. E assim cumpriste a tua missão: apareceste, tocaste a tua música e deslumbraste!
E depois surges tu, Sofia! Irmã na vida e na música. Mas, Sofia, tu não tocavas! Pois não, cantavas: tinhas uma voz de contralto deslumbrante (Porque o canto não era nela senão o anúncio de que estava viva, de que estava presente na terra. cap. III) e cantavas maravilhosamente bem. Eras a sabedoria rebelde. Eras a demonstração de que o eu se assumia em plenitude. Eras o milagre da vida exposto perante o cantar da Beira Baixa, nascido da terra, do fundo dos tempos, de uma memória de origens. (Era um cantar da Beira Baixa, escuro, antiquíssimo ou com um sabor a isso, ali, na grande noite lunar. cap. XXIII) E assim prenuncias a tua trágica morte, necessária para explicar a grandeza e o milagre da vida.
Por fim, a completar o trio da perfeição feminina, discretamente, apareces tu, Ana. Onde está a tua música? A tua harmonia está na harmonia das palavras. Tu pensas, Ana! Tu tens a ousadia de enfrentar o profeta e mostrar que a mensagem pode ser lida noutro sentido. Mas primeiro fazes o caminho da busca, procuras a resposta nas palavras evangélicas de Alberto! E descobres a fragilidade das palavras que o Carolino conta na sua experiência de as mastigar. Afinal, as palavras podem harmonizar-se desde que a harmonia venha do interior. Daí teres, Ana, a irregularidade de um dente: és humana, não fora essa irregularidade, serias perfeita. Tu descobres, na grandeza da tua irmã Cristina, na estranha cumplicidade, a maravilhosa realização da vida. E és, assim, a síntese da feminilidade, a realização do milagre da vida, não no sentido daquilo que o Alberto pregava, mas na realização de uma missão que assumiste como tua: ser mãe!”
De referir que este trio de personagens femininas completam aquilo que poderíamos considerar um desmembramento de uma personagem só: o eterno feminino. Na inocência de Cristina, na rebeldia de Sofia e na inquietação de Ana, temos representadas três facetas do mundo da mulher. A criança, a adolescente e a mulher que quer ser mãe completam-se. Isto tudo se passa no espaço da planície, da horizontalidade que é Évora. No outro espaço da obra, a Beira, onde domina a montanha e a presença da Lua é constante, temos o trio masculino constituído pelo narrador, Alberto Soares, e seus irmãos Evaristo e Tomás. Se o Evaristo não tem um simbolismo relevante na economia da narrativa, já Alberto e Tomás têm bastante peso. (Mas isso levar-nos-ia longe e pode ficar para outra reflexão.)
O milagre da vida, o absurdo da morte, o facto extraordinário de estar vivo, são os temas base deste magnífico romance vergiliano que nos leva pelos percursos interiores da descoberta de nós próprios, na linha do existencialismo europeu do pós-guerra. O autor atrai-nos para esta introspeção, recorrendo a uma bela prosa poética. A obra é de 1959 e valeu ao autor o seu primeiro prémio literário, em 1960, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Outros viriam posteriormente.
Termino relembrando que, no próximo dia 1 de Março, passam vinte anos sobre a morte de Vergílio Ferreira.
José Manuel Monteiro
[Texto publicado na edição de hoje do jornal A Guarda]