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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Vergílio Ferreira - "A Guarda" (28.01.2016)

A memória das palavras


Vergílio Ferreira


Celebram-se hoje, exactamente, os 100 anos do nascimento de Vergílio Ferreira. Escritor maior da literatura portuguesa será recordado enquanto houver um ser humano pensante neste planeta Terra e enquanto houver um português também ele pensante. Não se gosta facilmente da obra vergiliana pois ela obriga a pensar e este acto, como lembrava o poeta, “incomoda como andar à chuva.” Em Vergílio Ferreira não podemos apenas ler, temos de entrar na escrita e aí o escritor arrasta-nos consigo para o mundo do pensamento. Viver é, pois, pensar. Ele próprio não era de fácil convivência com os seus semelhantes, cultivava um pouco o distanciamento para assim criticar livremente os actos sociais. Testemunhos desta crítica são os vários volumes do seu diário: “Conta-corrente” (9 volumes) e as obras “Pensar” e “Escrever”. Nas suas páginas encontramos amiúde desabafos sobre o que se passa no país e qual o seu ponto de vista acerca de determinados temas recorrentes na sociedade em que vivia. Relevantes nesta linha são também os seus livros de ensaios ou de reflexões como “O espaço do invisível”.
Podemos afirmar que em Vergílio Ferreira há duas seduções: a da vida e a da escrita. A primeira é mais subjectiva, a segunda mais objectiva. A sua vida foi de facto um percurso singular de Homem íntegro, professor dedicado e pensador livre. A infância passada na sua terra natal, Melo, Gouveia, deu-lhe matéria a muitas páginas dos seus livros. Com os pais emigrados esteve entregue aos cuidados das tias que lhe traçaram o caminho do Seminário do Fundão. Frequentou depois o Liceu da Guarda e a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Recusada uma entrada para Assistente na Faculdade enveredou pelo professorado e exercendo o seu múnus em várias localidades acabando por efectivar no Liceu Camões em Lisboa.
Na escrita, a sedução é a da palavra, semente do pensar, da reflexão e da vivência. Os romances vergilianos são, normalmente, actos de pensar. Na linha existencialista viver implica reflectir e cada texto é pois um acto de reflexão introspectiva feita no espaço interior de cada indivíduo. Mas este espaço é constituído não só pelas vivências pessoais que cada um de nós experiencia, como também pelas vivências que vêm de trás, apreendidas pela educação e até pela hereditariedade. Cedo começou a escrever e iniciou o seu percurso de escritor com preferência pelo romance inserido na corrente do neo-realismo. Dessa época são os primeiros livros: O caminho fica longe, Onde tudo foi morrendo e Vagão J. A partir de Mudança entra na linha do existencialismo cristão bebendo inspiração em André Malraux e Karl Jaspers. Mais tarde enveredará por uma escrita mais pessoal e nessa linha se manterá até à morte. Da narrativa destacam-se dois romances que marcaram a sua vida de escritor: Aparição, publicado em 1959 e Para sempre, publicado em 1983. O primeiro é um livro de referência do século XX português porque não só releva o nome do autor para a ribalta da literatura portuguesa, mas acima de tudo porque é uma reflexão sobre os grandes problemas que preocupavam a Europa do pós-guerra. O segundo é uma epopeia do sofrimento humano, da dor, da vida e sobretudo da morte. É um livro, por isso, difícil de ler não pelo vocabulário empregue, mas pela agudeza das afirmações e da reflexão constante em que somos imersos. Os dois são, de facto, obras primas da literatura portuguesa e Vergílio Ferreira é um dos maiores autores do século. Agora que a Quetzal vai reeditar as obras do autor é uma ocasião propícia para relermos ou lermos os seus livros.
Em relação à nossa cidade, onde estudou e voltou algumas vezes, ela está presente em várias obras quer pela menção directa que lhe é feita, quer pelo topónimo Penalva. É no romance Estrela Polar que Penalva surge aos olhos do leitor como uma réplica da Guarda. Aí vemos muitas descrições de espaços citadinos, identificamos os nomes das ruas e das praças e movimentamo-nos pela ideologia inerente ao pensamento citadino da época. (A este propósito no próximo sábado haverá uma visita guiada pela cidade, organizada pela BMEL, para conhecermos melhor os espaços referidos nas obras de Vergílio Ferreira.)

José Manuel Monteiro