Vergílio Ferreira 31 - (1916-2016)
"Que ridículo e mesmo estúpido dizer-se de um livro que está bem escrito. Não é «bem escrito» que está. Está é sentido originalmente, original nas observações, inteligente na reflexão. É por isso que não se pode imitar. Pode-se é ser original de outra maneira. Há realmente livros que são apenas «bem escritos». São os livros banais, com palavras trabalhadas ao torno, frases que se pretendem «despojadas», reduzidas ao «essencial», e cruas. (...) O que nos fica de um livro «bem escrito» é essa emoção que já não lembra as palavras e vive por si.
Eis porque tal livro é inimitável e apenas poderá repetir-se, ou seja plagiar-se. Imitar verdadeiramente esse livro é recompor uma emoção afim e inventar outras palavras que traduzam esse sentir, ou seja que lhe sirvam de pretexto ou estratagema para que esse sentir (e pensar/sentir) se realize como a música nas cordas de um instrumento. O escritor medíocre imagina que todo o seu trabalho deve incindir no trabalhar uma frase. Ora não é a frase que tem de se trabalhar: é aquilo que há-de passar por ela. Os autores célebres que trabalharam a frase, na realidade trabalharam apenas aquilo que haviam de exprimir; testaram na frase a realização de uma expressão. O escritor medíocre dá como já adquirido o que haveria a dizer e todo o seu esforço é secar o período, burilar ou envernizar o vocábulo. E no fim de contas, este é que «escreve bem». Mas quem assim escreve bem, escreve bastante mal. Não digo rasamente que o «conteúdo» preceda a sua «expressão». Mas o que preexiste à expressão não é um puro nada. Exprimir é operar e concretizar esse algo. Mas esse algo existe. Escrever bem, como se diz, é realizar pela escrita um «bem» que aí se revela mas que está antes e depois disso em que se revela. Escreve-se bem com o espírito e a sensibilidade - não com um dicionário. Embora seja no dicionário que está toda a obra-prima. Como na pedra está toda a melhor escultura."
Vergílio Ferreira, Conta-Corrente