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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

...

não me peças perdão. A culpa é minha:
foi este tempo todo descuidado,
foi não achar que o fim um dia vinha
foi ficar sem defesas a teu lado


foi nunca te lembrar em sobressalto
foi não deixar falar a tua boca
foi não pensar em ventos no mar alto
foi tanta coisa, tanta, hoje tão pouca


foi deixar-me viver em falsa paz
foi afagar-te as mãos sem as prender
ou foi prendê-las mal e tanto faz
julgar que se morreria de prazer


agora é tarde, sim, tarde de mais
tropeço às cegas nesta dura lei,
não sei se vale a pena dar sinais
e o que te hei-de dizer também não sei

Vasco Graça Moura

blues da morte de amor - Vasco Graça Moura (1942-2014)

já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida,
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.

a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing, minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.

há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali.
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: — morrer ou não morrer, darling, ah, sim.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"

 

 

 

O MELRO DE VISITA - Vasco Graça Moura

 

 

o amor não é uma saga cruel:
vejo-a cuidar das plantas no jardim,
brincam as filhas com lápis e papel
e eu escrevo sossegado. é bom assim.

 

na relva, um melro a saltitar, vilão
pretíssimo, esfuzia à cata de algum resto,
ou de mosca azarada: passa lesto
entre duas roseiras: já é verão.

 

mas o melro demanda outro quintal
e do poema, sem jeito e sem disfarce,
sai do bico amarelo em diagonal

 

desajeitada: esvoaça sem maneiras
como um pingo de tinta a escapar-se,
de verde prateado, as oliveiras.

 

 

«Sonetos Familiares»