Passo a noite a sonhar o amanhecer. Sou a ave da esperança. Pássaro triste que na luz do sol Aquece as alegrias do futuro, O tempo que há-de vir sem este muro De silêncio e negrura A cercá-lo de medo e de espessura Maciça e tumular; O tempo que há-de vir - esse desejo Com asas, primavera e liberdade; Tempo que ninguém há-de Corromper Com palavras de amor, que são a morte Antes de se morrer.
Orfeu rebelde, canto como sou: Canto como um possesso Que na casca do tempo, a canivete, Gravasse a fúria de cada momento; Canto, a ver se o meu canto compromete A eternidade do meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam os rouxinóis... Eu ergo a voz assim, num desafio: Que o céu e a terra, pedras conjugadas Do moinho cruel que me tritura, Saibam que há gritos como há nortadas, Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte No corpo dum poeta que a recusa, Canto como quem usa Os versos em legítima defesa. Canto, sem perguntar à Musa Se o canto é de terror ou de beleza.
Miguel Torga nasceu no dia 12 de agosto de 1907 em S. Martinho de Anta, concelho de Sabrosa Trás os Montes, aldeia onde cresceu e que o havia de marcar para toda a vida. De nome Adolfo Correia da Rocha, adoptou o pseudónimo de Miguel Torga(torga é o nome dado à urze campestre que sobrevive nas fragas das montanhas, com raízes muito duras infiltradas por entre as rochas). Depois de uma breve estadia no Porto, frequentou apenas por um ano, o seminário em Lamego. Em 1920 partiu para o Brasil, onde foi recebido na fazenda de um tio. Regressou depois a Portugal acompanhado do tio, que se prontificou a custear lhe os estudos em Coimbra. Em apenas três anos fez o curso do liceu, matriculando se a seguir na Faculdade de Medicina, onde terminou o curso em 1933. Exerceu a profissão na terra natal, passou por Miranda do Corvo, mas foi em Coimbra que alguns anos mais tarde acabou por se fixar."Atordoado na meninice e escravizado na adolescência, só agora podia renascer ao pé de cada rebento, correr a par de cada ribeiro, voar ao lado de cada ave", pouco sociável, mitigou a solidão rodeando se de livros. Foi logo após ter entrado para a universidade, que deu início à sua obra literária, com os livros "Ansiedade" e "Rampa". Só em 1936 passou a usar o pseudónimo que o havia de imortalizar. Desde a década de trinta até 1944, escreveu uma obra vasta e marcante, em poesia, prosa e teatro. Não oferecia livros a ninguém, não dava autógrafos ou dedicatórias, para que o leitor fosse livre ao julgar o texto. Foi várias vezes candidato a Prémio Nobel da Literatura. Ganhou vários prémios entre eles oGrande Prémio Internacional de Poesia e em 1985 o Prémio Camões. Com ideias que se demarcavam do salazarismo, foi preso e pensou em sair do país, mas não o fez por se sentir preso à pátria e a Trás os Montes, longe do qual seria um "cadáver a respirar". A sua poesia reflecte as apreensões, esperanças e angústias do seu tempo. Nos volumes do seu Diário, em prosa e em verso, encontramos crítica social, apontamentos de paisagem, esboço de contos, apreciações culturais e também magníficos textos da mais alta poesia. Toda a sua obra, embora multifacetada, é a expressão de um indivíduo vibrante e enternecido pelas criaturas, tremendamente ligado à sua terra natal. Faleceu no dia 17 de janeiro de 1995.
Bibliografia: Poesia: "Ansiedade" (1928), "Rampa" (1930), "Tributo" (1931), "Abismo" (1932), "O outro Livro de Job" (1936), "Lamentação" (1943), "Libertação" (1944), "Odes" (1946), "Nihil Sibi" (1948), "Cântico do Homem" (1950), "Alguns Poemas Ibéricos" (1952), "Penas do Purgatório" (1954), "Orfeu Rebelde" (1958), "Câmara Ardente" (1962), "Poemas Ibéricos" (1965). Ficção: "Pão Ázimo" (1931), "A Terceira Voz" (1934), "A Criação do Mundo" (5 volumes, 1937 1938 1939 1974 1981), "Bichos" (contos, 1940), "Contos da Montanha" (1941), "Rua" (1942), "O Senhor Ventura" (1943), "Novos Contos da Montanha" (1944), "Vindima" (romance, 1945), "Pedras Lavradas" (contos, 1951), "Traço de União" (1955), "Fogo Preso" (1976). Teatro: "Terra Firme, Mar" (1941), "O Paraíso" (1949), "Sinfonia" (poema dramático)(1947). Literatura autobiográfica: "Diário" (16 volumes, 1941 1993), "Portugal" (1950).
Deixem passar quem vai na sua estrada. Deixem passar Quem vai cheio de noite e de luar. Deixem passar e não lhe digam nada.
Deixem, que vai apenas Beber água de Sonho a qualquer fonte; Ou colher açucenas A um jardim que ele lá sabe, ali defronte.
Vem da terra de todos, onde mora E onde volta depois de amanhecer. Deixem-no pois passar, agora
Que vai cheio de noite e solidão. Que vai ser Uma estrela no chão.
Miguel Torga
[Há pouco no TMG o grupo OUTORGA cantou este e outros poemas de Miguel Torga. Foi um bom espectáculo em que a música e a poesia estiveram de mãos dadas e em excelente harmonia. Também de referir que o compositor das músicas é guardense: João Mascarenhas. O poema "Relato" pode ser ouvido aqui.]
Tens agora outro rosto, outra beleza: Um rosto que é preciso imaginar, E uma beleza mais furtiva ainda… Assim te modelaram caprichosas, Mãos irreais que tornam irreal O barro que nos foge da retina. Barro que em ti passou de luz carnal A bruma feminina…
Mas nesse novo encanto Te conjuro Que permaneças. Distante e preservada na distância. Olímpica recusa, disfarçada De terrena promessa Feita aos olhos tentados e descrentes. Nenhum mito regressa…. Todas as deusas são mulheres ausentes.
Somos nós
As humanas cigarras!
Nós,
Desde os tempos de Esopo conhecidos.
Nós,
Preguiçosos insectos perseguidos.
Somos nós os ridículos comparsas
Da fábula burguesa da formiga.
Nós, a tribo faminta de ciganos
Que se abriga
Ao luar.
Nós, que nunca passamos
A passar!...
Somos nós, e só nós podemos ter
Asas sonoras,
Asas que em certas horas
Palpitam,
Asas que morrem, mas que ressuscitam
Da sepultura!
E que da planura
Da seara
Erguem a um campo de maior altura
A mão que só altura semeara.
Por isso a vós, Poetas, eu levanto
A taça fraternal deste meu canto,
E bebo em vossa honra o doce vinho
Da amizade e da paz!
Vinho que não é meu,
mas sim do mosto que a beleza traz!
E vos digo e conjuro que canteis!
Que sejais menestreis
De uma gesta de amor universal!
Duma epopeia que não tenha reis,
Mas homens de tamanho natural!
Homens de toda a terra sem fronteiras!
De todos os feitios e maneiras,
Da cor que o sol lhes deu à flor da pele!
Crias de Adão e Eva verdadeiras!
Homens da torre de Babel!
Homens do dia a dia
Que levantem paredes de ilusão!
Homens de pés no chão,
Que se calcem de sonho e de poesia
Pela graça infantil da vossa mão!
Miguel Torga
[Fez ontem anos que o seu espírito rebelde e indomável deixou de nos mimar com exemplos de poesia e de vida (que são a mesma coisa!). Mas o seu testamento já estava feito e o legado perdura: saibamos aproveitá-lo.]
Senhor, deito-me na cama
Coberto de sofrimento;
E a todo o comprimento
Sou sete palmos de lama:
Sete palmos de excremento
Da terra-mãe que me chama.
Senhor, ergo-me do fim
Desta minha condição:
Onde era sim, digo não,
Onde era não, digo sim;
Mas não calo a voz do chão
Que grita dentro de mim.
Senhor, acaba comigo
Antes do dia marcado;
Um golpe bem acertado,
O tiro dum inimigo...
Qualquer pretexto tirado
Dos sarcasmos que te digo.
Miguel Torga, Diário
Porque há dias (ou tempos) em que a condição de mortais é mais premente e nos leva a reflectir no nada que somos, no dependentes que somos, na fragilidade que nos acompanha desde a nascença à sepultura!!! E Torga, apesar de médico (ou porque o era), sentiu-o bem e ninguém o soube dizer melhor que ele.