No dia 5 de Maio, foi apresentado no pátio interior do Museu, o livro “Rua do Encontro”, compilação de 13 contos de autores nascidos ou com ligações fortes à Guarda. A iniciativa integra-se no âmbito da Candidatura da Guarda a Capital Europeia da Cultura 2027 e teve a coordenação do Prof. Thierry dos Santos, Diretor do Museu.
«Com este projeto editorial, não só se presta […] uma homenagem à multissecular urbe com cunho sanchino como se oferec[e] aos amantes de literatura por ela atraídos um livro passível de lhes criar uma conexão emocional com os seus imaginários e cenários singulares.» Estas palavras do Sr. Diretor resumem, no essencial, o conteúdo da obra: criar uma ligação da cidade com os seus habitantes, ligação afetiva e social e histórica, obviamente. Os textos são de Ana Monteiro, Anabela Matias, Ângela Canez, António Moreira, Carlos Adaixo, Carlos Carvalheira, Carlos Galinho Pires, Cristino Cortes, Jerónimo Jarmelo, Jorge Carvalheira, Jorge Margarido, Maria Afonso e Teresa Martins Marques, englobando pessoas de várias gerações. A maioria destas 13 narrativas regressa ao passado quer individual, quer histórico para nos levar a percorrer vários espaços e tempos ligados à nossa cidade. Como referiu o Prof. Joaquim Igreja na apresentação, nenhum dos contos viaja para o futuro da cidade. Repensar a cidade projetando-a para o que há de vir, será tarefa para outras narrativas, talvez. É, então, um livro em que se entrecruzam personagens do imaginário citadino desde o seu fundador, D. Sancho, e dos seus amores paralelos com a Ribeirinha até personagens mais próximas de nós, do século XX por exemplo. "Oferece-se ao leitor um percurso pelo imaginário guardense, revelador de aspetos mais profundos da cidade beirã e potenciador de reflexões críticas acerca dos estereótipos que lhe estão associados", no dizer do Sr. Presidente da Câmara, Carlos Monteiro. Significativo é o conto Os Fantasmas cá da Terra”, de Anabela Matias, onde se entrecruzam várias figuras do imaginário citadino, alternando entre os dois espaços sociais da Guarda, do século XX: o Café Monteneve e o Café Mondego.
Em termos da narrativa, literariamente falando, temos um discurso quase sempre prosaico, mas há textos que cruzam a narrativa e a poesia. É o caso do conto referido acima, mas também dos contos de Ana Monteiro, Maria Afonso, Carlos Carvalheira. Há depois outros que entram pelo mito dentro dando-nos uma visão teatralizada da cidade como lugar de culto ou de desmitificação. Aí podemos inserir o conto “O Santo Sacrifício”, de Cristino Cortes, que nos recorda a “assistência” da juventude às cerimónias sagradas dos domingos. Pela contemplação exterior é bom de ver.
Como não podia deixar de ser, a neve tem presença assegurada quer pela rememoração de brincadeiras infantis (Carlos Galinho Pires), quer pela presença irrevogável da “Balada” giliana. Também a época natalícia é revisitada (Jerónimo Jarmelo), ou a rua dos primeiros amores (Carlos Adaixo). A presença do R12, na cidade, não fica esquecida (António Moreira), assim como o ensino, nessa época menos boa do salazarismo, na visão da história oficializada nas aulas através do compêndio do Mattoso (Jorge Carvalheira), ou na pobreza muitas vezes “disfarçada” nos amores impossíveis das aldeias (Teresa Marques).
Há ainda um toque de aproximação ao presente em 2 contos, narrativas singulares nesta coletânea a juntar á já referida de Ana Monteiro, que nos dão simultaneamente uma visão diferente da cidade sanchina. Refiro-me à narrativa de Ângela Canez que contrapõe a Dra. Matilde da cidade alta ao Quim da zona da estação, lavador de louça num restaurante francês. Inconciliáveis? Física e socialmente, sim. Por fim, em “Detalhes e Bohemia” (Jorge Margarido) vemos a intrusão do turista na cidade e o regresso inadiável, mas sempre repetido. No espaço simbólico entre a Guarda e Vilar Formoso.
Termino este aperitivo de leitura, porque vale mesmo a pena ler este livro, com as palavras de Helena Rebelo no posfácio: «A Guarda é uma cidade histórica e, nela, muito há para contar dos séculos passados ao presente porque o futuro está aí à porta e precisa de lembranças. É o que esta compilação de contos faz, uma vez que possibilita guardar um património literário, cultural e linguístico comum.»
Se ler Aquilino na altura em que viveu e publicou os seus livros era uma aventura só ao alcance de alguns, hoje será de certeza um trabalho hercúleo para a maior parte dos portugueses, quanto mais para um simples estudante do secundário. Aliás, as obras de Aquilino já não fazem parte dos programas do secundário há uns anos largos.
Passam este ano os 100 anos da publicação de um romance emblemático de um dos maiores escritores do século XX: “Terras do Demo”. Foi em 1919 que foi editado o romance e catapultou Aquilino para o mercado editorial. O título passou a designar a região em que decorre a acção da narrativa e que, como diz o seu autor no prólogo, tenta retratar uma vida aldeã que fervilha indiscriminadamente em cada ser, mas também em cada recanto de um espaço muito sui generis e ainda na fauna e flora típicas dessas terras perdidas nas serranias do interior mais profundo de um Portugal dominado por ideias mesquinhas e políticos perdidos na grande cidade. A aldeia serrana, como aquela em que fui nado e baptizado e me criei são e escorreito, é assim mesmo: barulhenta, valerosa, suja, sensual, avara, honrada, com todos os sentimentos e instintos que constituíam o empedrado da comuna antiga. Ainda ali há Abraão e os santos vêm à fala com os zagais nos silenciosos montes; ali roda o velho carro visigótico nos caminhos romanos, mais velhos que eles. (…) A vida é, de resto, sempre curiosa. Quando se ergue uma lancha em terra húmida de lameira, acontece fervilhar aos nossos olhos toda uma fauna prodigiosamente multicolor. Vive ali em cantões, paredes meias, esta bicharada que a conspícua zoologia distribui em nébrias. Mas também ali se encontram por vezes: o bicho-de-conta tímido; a centopeia monástica; uma cabrinha preta; no Verão, o grilo cantarola. (Aquilino Ribeiro, Terras do Demo.)
Deste excerto do prólogo, dedicado a Carlos Malheiro Dias, podemos supor o conteúdo: por um lado, uma linguagem castiça, rústica, cheia de regionalismos, por outro, a preocupação de transmitir com muita fidelidade as serras, as pessoas e os costumes. E a aldeia desfila diante dos nossos olhos de leitor contando as anedotas, os aleijões que o ser humano, terrível caricaturista, vai criando paulatinamente. Vemos os sucessos e as desditas dos membros daquela sociedade fechada e mesquinha, mas capaz de dar a camisa quando o amigo ou a o rival a necessitam. Vemos o ser humano racional a emparceirar com o bruto animal, doméstico ou montanhês, (quem não se lembra da salta-pocinhas aquiliniana?). Vemos uma etnografia genuína, cheia de tradições e crenças ancestrais que recuam a Adão e Eva. É este mundo agreste, mas irresistível, que o autor vai desdobrando ante os nossos olhos atónitos com uma realidade pintada magistralmente. E a língua castiça que as personagens usam e que mostram um português retinto, aldeão, regional. Sem deslustre de quem o usa, naturalmente. Motivo de orgulho de um mundo instintivo e natural. A riqueza do léxico está na novidade com que retrata o mundo rural que, disse Eduardo Lourenço, "não estaria apenas no olhar quase etnográfico que será o seu acerca da realidade beirã em que ele mesmo enraíza, mas na textura verbal igualmente mimética, tradutora, com a mais crua fidelidade, do falar serrano".
Nascido em Soutosa, Moimenta da Beira, apesar de ter corrido mundo por causa das suas ideias revolucionárias, nunca traiu as palavras que aprendeu na escola materna. Imortalizou-as nas suas obras e ainda aí estão para quem as quiser conhecer. No mundo citadino em que vivemos é difícil recuar a esse vocabulário telúrico, mas ajuda-nos a perceber a evolução da língua e a riqueza de um idioma que deu novos mundos ao mundo. As terras do demo são aqueles lugares onde a lenda se exprimia deste jeito: “Uma vez um homem travou do bordão e partiu a correr as sete partidas do Mundo. Andou, andou, até que foi dar a uma terra de que ninguém faz ideia: a gente comia calhaus e ladrava como os cães”.
A propósito deste centenário as autarquias das terras do demo, Moimenta da Beira, Sernancelhe e Vila Nova de Paiva, promovem até dia 2 de Junho várias iniciativas culturais.
"Toda a cultura real trabalha para a libertação do homem e por isso é, na sua raiz, revolucionária."
(Sophia de Mello Breyner)
Numa altura em que se celebra o Dia da Liberdade, vieram-me à memória estas palavras de uma das maiores poetisas do século XX português e, ao mesmo tempo, uma das grandes lutadoras contra o estado novo. A cultura deve ser sempre revolucionária e os políticos, porque sabem isso, tentam dominar esses espíritos criadores de ideias e textos capazes de mudar algumas mentalidades. É por demais sabido que os ditadores tentaram e tentam acabar com os pensadores e com as ideias novas porque, como diz a frase, elas libertam o homem.
Liberdade é o anseio do homem instruído pela leitura. É a própria respiração que nos exige esse amor à liberdade: se não lermos não respiramos. A grandeza da república romana foi construída por homens que souberam valorizar e dar importância à cultura, com Marco Túlio Cícero à cabeça. Este homem foi o primeiro a defender a riqueza que é ter ideias próprias e pensar por si. No célebre discurso – não pela importância do caso jurídico em si, mas pelo tema tratado – “Em defesa do poeta Árquias”, faz a apologia da poesia e da cultura para exaltar a consciência de ser romano, mesmo não tendo nascido em Roma. Por isso também, a partir de certa altura, começou a ser perseguido pelo poder político da velha cidade. Precisamente porque, como disse Sofia, foi um revolucionário. As cidades tornam-se grandes quando os seus dirigentes respeitam e acolhem os escritores e pensadores. Também a produção literária dos cidadãos de uma cidade a enaltece e divulga fora de portas.
A nossa cidade orgulha-se e bem de ter uma série de escritores ilustres que a exaltaram e que levaram o seu nome bem longe. Hoje, a Guarda continua a ter um grupo razoável de escritores. Não está em causa a sua valia literária ou a sua importância nacional. Alguns têm-na, outros podem vir a tê-la no futuro. Importa, sim, acarinhar e continuar a divulgar esses autores e esse foi o papel da BMEL durante algum tempo que, espero, sinceramente, continue a exercer. Recordo brevemente e a título exemplificativo alguns nomes que publicaram recentemente. Maria Afonso, Carlos Adaixo, Jorge Margarido, Odete Ferreira, Daniel Rocha, Manuel A Domingos, Alexandre Gonçalves, Rodrigo Santos, António Godinho e o mais produtivo e “internacional”, Américo Rodrigues. Peço desculpa se fica algum nome por referir, mas são alguns mais e que exigem uma atualização do livro “Antologia de Escritores da Guarda (séc. XII a XX)” dos também escritores António José Dias de Almeida e José Manuel Mota da Romana.
Voltando ao ponto de partida, nada melhor para celebrar a liberdade de 74, do que promover a divulgação destes autores, para que a cidade possa ser referência para todo aquele que quer ser culto e assim levar à consciência de uma cidadania ativa. Só seremos livres se tivermos a possibilidade de conhecer, de interpretar, de sonhar como dizia Fernando Pessoa. Só o sonho liberta o ser humano. Se ficarmos apegados àquilo que as televisões nos impingem apenas seremos escravos das ideias de um grupo de financeiros que querem que o mundo pense à maneira deles para não os perturbar. Podemos não ser livres, mas devemos ter essa ânsia dentro de nós, como bem disse Miguel Torga: "Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Ou então, para terminar em grande, dizer com Sophia:
Esta é a madrugada que eu esperava O dia inicial inteiro e limpo Onde emergimos da noite e do silêncio E livres habitamos a substância do tempo
“Sinto-me uma obra dos outros no sentido em que sou construído pela ternura, pela confiança, pela esperança dos outros.” (José Tolentino Mendonça)
Conheço este poeta há algum tempo e, desde que comecei a ler a sua poesia, senti que nela havia algo de diferente. Uma poesia de cariz humano, refletindo sobre as angústias do homem, mas de um modo positivo e optimista. Nos seus poemas há uma síntese de vários poetas do século XX, começando pelo inevitável Pessoa, mas também a procura persistente da palavra exacta como Eugénio de Andrade, ou uma espécie de saudosismo à Teixeira de Pascoaes e ainda uma tenacidade perante a vida e os valores cristãos mais relevantes na linha de Ruy Belo. Rigorosa e sintética será então a sua poesia. Ou nas suas palavras: a poesia é a arte de resistir ao tempo.
Quem é afinal este poeta pensador que o Papa quis como pregador para fazer o seu retiro quaresmal? Nascido na Madeira, em 1965, entrou para o Seminário aos 11 anos, por vocação: “A questão vocacional colocou-se muito cedo. Era uma questão relevante para mim desde miúdo”.Aos 16 anos escreveu o seu primeiro poema, A Infância de Herberto Hélder, poeta com quem partilhava a naturalidade madeirense e que admirava profundamente. “Aos 16 anos não sabia nada. Só sabia que amava o Herberto Hélder”, disse numa entrevista ao Público (11.12.2012).
Em 1990 foi ordenado sacerdote e publicou o seu primeiro livro de poesia: Os Dias Contados. Foi então para Roma estudar Ciências Bíblicas completando o seu percurso académico na Universidade Católica de Lisboa com o Doutoramento em Teologia Bíblica. È professor de teologia e atualmente Vice-Reitor da Universidade Católica. É também consultor do Conselho Pontifício da Cultura, desde 2011. Como biblista afirmou: “A Bíblia é um grande poema. Tem uma dimensão literária. Isso também lhe dá uma grande carga revelatória. Torna-a um livro intemporal. A Bíblia não é um catecismo. Não acho que se deva entender literalmente a Bíblia. A Bíblia precisa de interpretação.” (Público)
Afinal este escritor é Padre ou Poeta? É um HOMEM de cultura integrado no seu tempo e com uma mensagem inovadora em termos da Igreja. Como disse Francisco José Viegas, “O discurso dele é inovador para muita gente que não é católica, nem sequer cristã”. E, afinal, o que pregou ao Papa? Na primeira meditação citou Fernando pessoa e Lev Tolstoi para dizer que devemos aprender a desaprender; na segunda citou Clarice Lispector e Simone Weil sublinhando a importância de ter presentes os poetas no estudo da teologia. No último dia o Papa agradeceu as suas intervenções dizendo:
“Obrigado, padre, por nos falar da Igreja, este pequeno rebanho. E também por nos ter avisado para não nos encolhermos no nosso mundanismo burocrático e também por nos lembrar que a Igreja não é uma gaiola para o Espírito Santo, que o Espírito também voa e trabalha fora dela, Com as citações e com as coisas que nos contou, mostrou-nos como ele [o Espírito Santo] trabalha nos não crentes, nos pagãos e em pessoas de outras confissões religiosas: é universal, é o Espírito de Deus, e é para todos.”
A sua obra tem sido distinguida com vários prémios, entre eles o Prémio Cidade de Lisboa de Poesia (1998), o Grande Prémio de Poesia Teixeira de Pascoaes APE (2016). Contudo o melhor prémio é sem dúvida a unanimidade da crítica e os milhares de leitores da obra deste Padre que é também professor, poeta e ensaísta.
Texto publicado no jornal "A Guarda" de 29.03.2018
“Sento-me nesta sala vazia e relembro.” Assim começa e acaba a narrativa circular desse romance marcante na obra de Vergílio Ferreira: a Aparição. É, para mim, o seu romance mais atrativo e mais perfeito na meditação sobre o ser humano. Outros há mais expressivos de toda a sua escrita. Uma das temáticas gratas ao autor é o simbolismo que imprime à presença da música. Releio: “Oiço o Nocturno nº 20, de Chopin e recordo-te, Cristina, na tua mágica aparição: tocavas Chopin esforçando-te por chegar aos pedais do piano, mas isso não perturbava a tua fantástica personagem. “Toca, Cristina; Cristina, toca”. Assim se resume foneticamente a tua aparição em Aparição. E vemos-te na tua ingenuidade de 7 anos, madura na tua interpretação, presságio do teu destino trágico. E o simbolismo do teu nome: a sua relação com Cristo. Daí o Nocturno. (E de ver assim presente a uma inocência o mundo do prodígio e da grandeza, de ver que uma criança era bastante para erguer o mundo nas mãos. cap. III) E cais tragicamente numa curva da estrada, regressando do carnaval no Redondo. Porquê? Para expiar os pecados dos outros? Para seres uma revelação do eu inocente e pleno na tua perfeição da música? Porque afinal a música era a tua motivação para existires. Por isso continuavas a tocar depois de morta nas dobras do lençol. E assim cumpriste a tua missão: apareceste, tocaste a tua música e deslumbraste! E depois surges tu, Sofia! Irmã na vida e na música. Mas, Sofia, tu não tocavas! Pois não, cantavas: tinhas uma voz de contralto deslumbrante (Porque o canto não era nela senão o anúncio de que estava viva, de que estava presente na terra. cap. III) e cantavas maravilhosamente bem. Eras a sabedoria rebelde. Eras a demonstração de que o eu se assumia em plenitude. Eras o milagre da vida exposto perante o cantar da Beira Baixa, nascido da terra, do fundo dos tempos, de uma memória de origens. (Era um cantar da Beira Baixa, escuro, antiquíssimo ou com um sabor a isso, ali, na grande noite lunar. cap. XXIII) E assim prenuncias a tua trágica morte, necessária para explicar a grandeza e o milagre da vida. Por fim, a completar o trio da perfeição feminina, discretamente, apareces tu, Ana. Onde está a tua música? A tua harmonia está na harmonia das palavras. Tu pensas, Ana! Tu tens a ousadia de enfrentar o profeta e mostrar que a mensagem pode ser lida noutro sentido. Mas primeiro fazes o caminho da busca, procuras a resposta nas palavras evangélicas de Alberto! E descobres a fragilidade das palavras que o Carolino conta na sua experiência de as mastigar. Afinal, as palavras podem harmonizar-se desde que a harmonia venha do interior. Daí teres, Ana, a irregularidade de um dente: és humana, não fora essa irregularidade, serias perfeita. Tu descobres, na grandeza da tua irmã Cristina, na estranha cumplicidade, a maravilhosa realização da vida. E és, assim, a síntese da feminilidade, a realização do milagre da vida, não no sentido daquilo que o Alberto pregava, mas na realização de uma missão que assumiste como tua: ser mãe!”
De referir que este trio de personagens femininas completam aquilo que poderíamos considerar um desmembramento de uma personagem só: o eterno feminino. Na inocência de Cristina, na rebeldia de Sofia e na inquietação de Ana, temos representadas três facetas do mundo da mulher. A criança, a adolescente e a mulher que quer ser mãe completam-se. Isto tudo se passa no espaço da planície, da horizontalidade que é Évora. No outro espaço da obra, a Beira, onde domina a montanha e a presença da Lua é constante, temos o trio masculino constituído pelo narrador, Alberto Soares, e seus irmãos Evaristo e Tomás. Se o Evaristo não tem um simbolismo relevante na economia da narrativa, já Alberto e Tomás têm bastante peso. (Mas isso levar-nos-ia longe e pode ficar para outra reflexão.) O milagre da vida, o absurdo da morte, o facto extraordinário de estar vivo, são os temas base deste magnífico romance vergiliano que nos leva pelos percursos interiores da descoberta de nós próprios, na linha do existencialismo europeu do pós-guerra. O autor atrai-nos para esta introspeção, recorrendo a uma bela prosa poética. A obra é de 1959 e valeu ao autor o seu primeiro prémio literário, em 1960, da Sociedade Portuguesa de Escritores. Outros viriam posteriormente. Termino relembrando que, no próximo dia 1 de Março, passam vinte anos sobre a morte de Vergílio Ferreira.
José Manuel Monteiro
[Texto publicado na edição de hoje do jornal A Guarda]
Celebram-se hoje, exactamente, os 100 anos do nascimento de Vergílio Ferreira. Escritor maior da literatura portuguesa será recordado enquanto houver um ser humano pensante neste planeta Terra e enquanto houver um português também ele pensante. Não se gosta facilmente da obra vergiliana pois ela obriga a pensar e este acto, como lembrava o poeta, “incomoda como andar à chuva.” Em Vergílio Ferreira não podemos apenas ler, temos de entrar na escrita e aí o escritor arrasta-nos consigo para o mundo do pensamento. Viver é, pois, pensar. Ele próprio não era de fácil convivência com os seus semelhantes, cultivava um pouco o distanciamento para assim criticar livremente os actos sociais. Testemunhos desta crítica são os vários volumes do seu diário: “Conta-corrente” (9 volumes) e as obras “Pensar” e “Escrever”. Nas suas páginas encontramos amiúde desabafos sobre o que se passa no país e qual o seu ponto de vista acerca de determinados temas recorrentes na sociedade em que vivia. Relevantes nesta linha são também os seus livros de ensaios ou de reflexões como “O espaço do invisível”. Podemos afirmar que em Vergílio Ferreira há duas seduções: a da vida e a da escrita. A primeira é mais subjectiva, a segunda mais objectiva. A sua vida foi de facto um percurso singular de Homem íntegro, professor dedicado e pensador livre. A infância passada na sua terra natal, Melo, Gouveia, deu-lhe matéria a muitas páginas dos seus livros. Com os pais emigrados esteve entregue aos cuidados das tias que lhe traçaram o caminho do Seminário do Fundão. Frequentou depois o Liceu da Guarda e a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Recusada uma entrada para Assistente na Faculdade enveredou pelo professorado e exercendo o seu múnus em várias localidades acabando por efectivar no Liceu Camões em Lisboa. Na escrita, a sedução é a da palavra, semente do pensar, da reflexão e da vivência. Os romances vergilianos são, normalmente, actos de pensar. Na linha existencialista viver implica reflectir e cada texto é pois um acto de reflexão introspectiva feita no espaço interior de cada indivíduo. Mas este espaço é constituído não só pelas vivências pessoais que cada um de nós experiencia, como também pelas vivências que vêm de trás, apreendidas pela educação e até pela hereditariedade. Cedo começou a escrever e iniciou o seu percurso de escritor com preferência pelo romance inserido na corrente do neo-realismo. Dessa época são os primeiros livros: O caminho fica longe, Onde tudo foi morrendo e Vagão J. A partir de Mudança entra na linha do existencialismo cristão bebendo inspiração em André Malraux e Karl Jaspers. Mais tarde enveredará por uma escrita mais pessoal e nessa linha se manterá até à morte. Da narrativa destacam-se dois romances que marcaram a sua vida de escritor: Aparição, publicado em 1959 e Para sempre, publicado em 1983. O primeiro é um livro de referência do século XX português porque não só releva o nome do autor para a ribalta da literatura portuguesa, mas acima de tudo porque é uma reflexão sobre os grandes problemas que preocupavam a Europa do pós-guerra. O segundo é uma epopeia do sofrimento humano, da dor, da vida e sobretudo da morte. É um livro, por isso, difícil de ler não pelo vocabulário empregue, mas pela agudeza das afirmações e da reflexão constante em que somos imersos. Os dois são, de facto, obras primas da literatura portuguesa e Vergílio Ferreira é um dos maiores autores do século. Agora que a Quetzal vai reeditar as obras do autor é uma ocasião propícia para relermos ou lermos os seus livros. Em relação à nossa cidade, onde estudou e voltou algumas vezes, ela está presente em várias obras quer pela menção directa que lhe é feita, quer pelo topónimo Penalva. É no romance Estrela Polar que Penalva surge aos olhos do leitor como uma réplica da Guarda. Aí vemos muitas descrições de espaços citadinos, identificamos os nomes das ruas e das praças e movimentamo-nos pela ideologia inerente ao pensamento citadino da época. (A este propósito no próximo sábado haverá uma visita guiada pela cidade, organizada pela BMEL, para conhecermos melhor os espaços referidos nas obras de Vergílio Ferreira.)
1.Vasco Graça Moura (1942 – 2014) – Para ele “a poesia é a minha forma verbal de estar no mundo.” Mas era, acima de tudo, um tradutor. Traduziu muito e sobretudo literatura do tempo do renascimento. “Poeta e tradutor de grandes poetas, romancista, ensaísta, dramaturgo, cronista, antologiador, historiador honoris causa, advogado, político, gestor cultural – e podiam acrescentar-se várias outras actividades –, Graça Moura foi um improvável espírito renascentista encarnado neste presente um pouco caótico de mais para o seu assumido gosto pela ordem e pela disciplina.” Mas não só. Traduziu do espanhol, do francês, do italiano, do inglês e do alemão. Mas a maior tradução está registada nos inúmeros livros que escreveu: aí traduziu o seu pensamento, a sua literatura. Muitos textos têm reminiscências das traduções realizadas. Mas a tradução dos seus pensamentos realizou-a com paixão e sem compaixão. As ideias políticas valeram-lhe alguns inimigos, mas isso não o perturbou. O caminho interiorizou-o integralmente. Escrita de lucidez e independência feita de perfeição quase atingível, mas também, nalguns poemas, geométrica.
Foi um poeta único. "Eu cá transformo tudo em literatura", afirma-se num conhecido verso denunciador da poética alquímica, simultaneamente irónica e classicizante de Vasco Graça Moura. Essa tendência para a autodefinição transparece em alguns dos seus textos poéticos, mas também em escritos que ocasionalmente os acompanham, como acontece em "Poesia e autobiografia", onde podemos ler: "Para mim essas coisas são naturais. Escrevo poemas quando uma certa disponibilidade, uma certa informação e uma certa tensão agudizam a minha percepção do mundo e me permitem operar, por via da palavra poética, uma manipulação dele" (Modo Mudando). Neste sentido de recriação artística, não escandaliza ninguém que o poeta afirme, longe de biografismo ingénuos, que toda a sua poesia é modulada por uma "dimensão autobiográfica". Na sua refinada e aparentemente prosaica captação (re)criativa do efémero quotidiano, não esquece a moderna lição de O'Neill ou de Cesário, dois dos seus assumidos mestres. É justamente à luz da concepção simultaneamente lúdica e ética, orientadora do seu trabalho oficinal, que lemos com enorme prazer poemas como o lamento para a língua portuguesa ou os sentidos poemas com pessoas. (Cândido Martins, Letras & Letras).
Intransigente defensor da língua portuguesa, lutou persistentemente contra a aplicação do acordo ortográfico. A sua paixão pela nossa língua ficou registada no poema “lamento para a língua portuguesa” : “não és mais do que as outras, mas és nossa, / e crescemos em ti. nem se imagina / que alguma vez uma outra língua possa / pôr-te incolor, ou inodora, insossa, / ser remédio brutal, mera aspirina, / ou tirar-nos de vez de alguma fossa, / ou dar-nos vida nova e repentina. / mas é o teu país que te destroça, / o teu próprio país quer-te esquecer / e a sua condição te contamina / e no seu dia-a-dia te assassina. "Antologia dos Sessenta Anos"
2. Alberto da Costa e Silva – Prémio Camões 2014. Este ano o prémio foi para o Brasil. É um autor pouco conhecido entre nós – confesso que nunca li nada dele – e é poeta, memorialista, ensaísta e historiador especialista em África. É pois um autor a descobri,r uma vez que o prémio foi atribuído por unanimidade o que revela a sua importância. Numa primeira reação, Mia Couto, seu antecessor no galardão, disse que ao autor “fez o trabalho de resgatar a memória de África "com arte e elegância". "É um poeta que está a escrever e o que se está a premiar aqui não é só o trabalho de alguém que caminha pela história e pela reconstituição do passado mas que faz isso com qualidade literária". Alberto Costa e Silva, nasceu em São Paulo, em 1931, e foi embaixador do Brasil em Portugal. Um dos representantes de Portugal no júri, José Carlos de Vasconcelos, disse que o autor nos seus volumes de memórias tem uma parte substancial dedicada ao tempo que passou no nosso país sendo por isso um excelente testemunho sobre um período da história de Portugal. Acima de tudo é um historiador e esta faceta da sua obra é a mais conhecida. Dos anos de Lisboa deixamos o seu testemunho: “Três anos mais tarde, voltei a Lisboa, como embaixador. A cidade era outra. Não se podia mais estacionar um carro no Chiado, por exemplo, o que dantes se fazia facilmente. E os amigos estavam mais velhos. Alguns haviam morrido, como Botelho, e outros partiriam pouco depois de nosso retorno, como João Gaspar Simões e Alexandre O'Neill. Mudara Lisboa e mudáramos nós. Mas não se alterara o essencial: 20 anos depois, o ambiente de afeto era o mesmo. E ganhamos mais amigos.” (Autobiografia escrita em 2006 e publicado no Jornal de Letras).
Como aperitivo para uma leitura mais demorada fica um soneto da sua obra “As Linhas da Mão” que foi um livro premiado no Brasil:
Respiro e vejo. A noite e cada sol vão rompendo de mim a todo o instante, tarde e manhã que são tecido tempo, chuva e colheita. O céu, repouso e vento.
Vergel de aves. Vou entre viveiros, a caçar com o olhar, passarinhagem dos pequeninos sóis e das estrelas que emigram neste céu de goiabeiras.
mas sigo a jardinagem, podo o tempo, o desgosto do espaço, a sombra e o fogo, as florações da luz e da cegueira.
E, no dia, suspensa cachoeira, neste jogo sagrado, vivo e vejo o que veio em meus olhos desenhado.