Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Sophia 1919-2019

 

[QUE POEMA, DE ENTRE TODOS OS POEMAS]

Que poema, de entre todos os poemas,
página em branco?
Um gesto que se afaste e se desligue tanto
Que atinja o golpe de sol nas janelas.

Nesta página só há angústia a destruir
Um desejo de lisura e branco,
Um arco que se curve - até que o pranto
De todas as palavras me liberte.

 

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, in CORAL

Sophia 1919-2019

A memória das palavras

 

(Ainda) Sophia

 

    Em Sophia há uma escrita realizada em plenitude esclarecida. Construída com base no valor das palavras e nos valores de uma sociedade em transformação paulatina e orientada pela ideologia do, tristemente célebre, estado novo. As suas palavras, quer nos poemas, quer noutros géneros de escrita são sempre conscientes e didácticas. A par da revelação de um mundo injusto, percorre os lamentos, litânicos  algumas vezes, de uma religião adulterada e adulteradora (Porque os outros se mascaram mas tu não).

     Os temas recorrentes perpassam quase sempre pelos mesmos tópicos: a Grécia, o sol, o mar, o branco e o azul. Cinco palavras-paixão para a escritora. A Grécia, mais espaço cultural que físico, foi uma das atrações primordiais tantas vezes percorrida, tantas vezes bebida. Sintam-se os poemas de “Geografia” e “ Navegações” e ficamos imersos na paixão pela clareza da antiguidade e dos espaços de eleição: Creta, Delfos, Atenas, Cnossos. Berços exemplares de uma civilização feita de harmonia, isto é, tentativas de harmonia do ser humano com os deuses. O fogo que esclareceu a civilização europeia até aos nossos dias.

     Depois paralelamente com a Grécia, o sol. Também ele claro, brilhante, iluminador. Elemento necessário à capacidade de transformar, de criar. Ou de destruir? Não me parece que seja neste sentido, nem vejo onde, na obra de Sophia, possamos ver esta componente simbólica. Mas o sol, sempre o sol, condição essencial ao acto poético, à claridade das palavras. A transfiguração de uma realidade baça e cinza. A denúncia de dias cinzentos, negros e tristes.

     Necessário à sua respiração poética vem inexoravelmente o mar. Poseidon revisitado constantemente. Força centrípeta na sua escrita, força revigoradora e calmante. O mar da praia da Granja, o mar de Lagos e Cacela, o mar Egeu – mãe criadora. O mar difusor de cultura forjador da diáspora homérica. O mar espelhado. O mar re-ligador original. O mar a quem nunca se poderá fugir, nem se quer fugir. O mar, o mar, o MAR.

     E as cores: branco e azul. Branco da cal. Branco do horizonte. Branco da espuma. Branco da cultura. Branco dos ideais. Branco do olhar. Branco do fumo. Branco das casas. Branco das palavras. E azul do mar, claro. Azul do céu. Azul das ideias. Azul transparente. Azul diáfano. Azul de coral. Azul de humanidade.

     Uma nota final: a RTP1 passou há dias um filme de Manuel Mozos sobre Sophia que não se deve deixar de ver. Recuperou muitos documentos em que a poeta aparece quer a falar sobre poesia, quer a recitá-la. A poeta aparece íntegra, sem adaptações, sem modificações. Nas palavras de que tanto gostava, mas que lhe causavam arrepios e com que não tinha medo de encarar a vida. Ou como escreveu a jornalista Joana Emídio Marques: ““Um dia mortos e gastos voltaremos a ser livres como os animais”, diz-nos o poema que ela recita com uma entoação que nos causa estranheza porque é declamatória. Mas é também um prodígio da articulação limpa das palavras, das sílabas. Como se Sophia quisesse chegar à mais ínfima tonalidade dos fonemas. Cada palavra é gerada para ser dita e é nessa música efémera das palavras faladas e não escritas que se engendra a poesia. Manuel Mozos rasgou nestes dias uma janela para Sophia respirar de novo, ela que um dia escreveu: “Ressurgiremos onde as palavras são o nome das coisas”.” (Observador, 26.10.2019)

[Último texto no âmbito do centenário de Sophia publicado hoje no Jornal "A Guarda"]

Sophia 1919-2019


GOESA

Tudo era atravessado por um rio de memórias
E brisas subtis e lentas se cruzavam
E enquanto lá fora balançavam
Os grandes leques verdes das palmeiras
Uma rapariga descalça como bailarina sagrada
Atravessou o quarto leve e lenta
Num silêncio de guitarra dedilhada

 

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, O BÚZIO DE CÓS E OUTROS POEMAS

Sophia 1919-2019

caminho.jpg

 

Serenamente sem tocar nos ecos
Ergue a tua voz
E conduz cada palavra
Pelo estreito caminho.

Vive com a memória exacta
De todos os desastres
Aos deuses não perdoes os naufrágios
Nem a divisão cruel dos teus membros.

No dia puro procura um rosto puro
Um rosto voluntário que apesar
Do tempo dos suplícios e dos nojos
Enfrente a imagem límpida do mar.

 

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, NO TEMPO DIVIDIDO 

Sophia 1919-2019

mar.jpg

Neste dia de mar e nevoeiro
É tão próximo o teu rosto
.
São os longos horizontes
Os ritmos soltos dos ventos
E aquelas aves
Que desde o princípio das estações
Fizeram ninhos e emigraram
Para que num dia inverso tu as visses
.
Aquelas aves que tinham
uma memória eterna do teu rosto
E voam sempre dentro do teu sonho
Como se o teu olhar as sustentasse

 

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN, CORAL

*
Hoje foi Dia Nacional do Mar
O Dia nacional do Mar é uma data comemorativa da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, que entrou em vigor a 16 de Novembro de 1994, tendo sido ratificada por Portugal a 14 de Outubro de 1997.