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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Esteiros

 No último sábado, os moços do Telhal Grande receberam a féria com gritos de contentamento. As moedas não tapavam o fundo das algibeiras; mas os projectos transbordavam dos cérebros infantis. No dia seguinte abria a Feira; ia haver esperas de toiros e toiradas, circos e cavalinhos. Por isso, a alegria dos rapazes punha em apuros o mestre, à hora do pagamento.

- Se não se calam, racho um! - vociferou ele, avançando para a porta da barraca.

Fez-se silêncio. Os que estavam mais próximos recuaram, temerosos. Mas logo Gineto gritou de longe:

- O melhor é matar-nos!

- Para quê, pá? Só levava ossos... – comentou Sagui, indicando o corpo enfezado.

- Ou calam-se, ou paro com isto!

Calaram-se. Ficar sem féria seria perder a Feira, e a Feira era a verdadeira festa de despedida dos moços dos telhais. Cinco dias de pândega, entre um Verão de canseiras que findava e um Inverno de miséria que surgia.

O pagamento prosseguiu.

- Malesso!

- Pronto – e agitando na mão o dinheiro recebido, exclamou: - Este é pró fato novo...

- Novo de há dois anos, aldrabão - casquinou Gineto.

- Amanhã é que se vê.

- Sagui! - chamou o mestre.

- Cá estou.

Detrás, um companheiro perguntou:

- Vais comer todos os bolos da Feira co isso?

- Se cá couberem...

Bateu na barriga, e a malta riu. Sagui era pequeno, mas tinha fama de comilão. Só fama...

O mestre continuou:

- Guedelhas!

- Pronto.

O moço saiu cabisbaixo, a contar a féria que os irmãos e o pai, desempregado há dois meses, esperavam.

Os companheiros sabiam disso, e não gracejavam.

- Gineto!

Sem responder, o moço adiantou-se, devagar.

-Tiveste sorte, hem! - disse o mestre com ironia. - Desta vez deitaste fora a temporada.

- Foi por gostar muito de você.

Frente a frente, olharam-se com raiva.

- Malandro... — rugiu o mestre.

- Cão! - ripostou Gineto. E saiu lépido, empurrando os companheiros.

Um destes gargalhou:

- Foge, Gineto.

- Foge o quê, pá? - estacou ameaçador. - Se ele me comer, tem que me largar pelo rabo. Que julgas?

O outro calou-se, amedrontado, e Gineto seguiu caminho, maldizendo o mestre e o telhal.

Quantas vezes, em horas de revolta surda, pensara pagar com juros todas as injúrias do capataz e abandonar depois o trabalho. Já assim fizera em todos os telhais. Com 7 anos, ia o pai levá-lo pelas orelhas até à eira.

- Mestre: tome-me conta deste fidalgo.

Mas, antes de o pai chegar ao portão, atravessava ele o caniço dos esteiros e, mesmo vestido, atirava-se ao rio. A corrente era forte, mas na outra margem havia pássaros, toiros bravos a pastar e valados desconhecidos. À noite, esperava-o a tareia do costume, em vez da ceia, e na manhã seguinte regressava ao telhal pelas orelhas.

Morava no fim da vila, à beira dos esteiros. Da casa que o pai fizera, toda madeira e lata, viam-  -se os toiros pastar na outra margem e as rotas dos barcos. Havia tufos de junco nos esteiros e lixo abandonado. Mas Gineto sonhava conquistar todas as ruas. Quando pequeno, ainda convertera os esteiros em florestas e rebuscara no lixo brinquedos preciosos. Cedo, porém, se aborreceu daquele recanto monótono, só água e planície. A floresta dava-lhe pela cinta - era junco - e o lixo era lixo, apenas. Começaram então as fugas para a rua. A mãe bem lhe dizia ao fechar a porta: «Toma-me conta do pequeno!» Mas ele deixava o irmão a gatinhar na lama, e ia alvoroçar os garotos seus iguais. Ainda não era o Gineto ladrão. O nome veio-lhe depois com os assaltos aos pomares, florestas mais belas do que os esteiros. Mas já era mau e temido.Amigos tinha-os às vezes nos companheiros que precisavam da sua mão certeira para matar galinhas à solta ou colher frutos em pomares recatados. Fora disso, era mesmo um gineto escorraçado.

Desta vez, porém, foi dominado pela Feira. Queria desforrar-se nos cinco dias festivos, sem os berros do mestre e as pancadas do pai. Iria ver os acrobatas do circo; daria tiros ao canhão e passeios nos cavalinhos. E até havia de estancar o ardor do sangue, dentro das barracas de reposteiros vistosos, onde mulheres pintadas vendiam refrescos e beijos. Seria senhor da Feira e do seu destino; livre, como um homem.

Mas era preciso dinheiro, e então ficara no telhal. E, como um homem, vendeu os braços para que o dinheiro tilintasse agora no bolso das calças. Gineto sentia-se tão feliz que não se lembrou das lágrimas que a mãe havia de chorar por ele e pela féria da semana. Subiu o beco do Mirante a assobiar. As quintas estavam ali em frente a retalhar os vales e a seduzir olhares. O sol, ainda alto, tomava mais branco o branco dos muros e revivescia com reflexos doirados as folhas estioladas das videiras. Mas Gineto não receava a luz da tarde. Tinha a certeza que os caseiros não estariam de atalaia, entre os pomares, porque a melhor fruta já fora apanhada. O moço do telhal sabia de colheitas. Todavia, chegado à estrada, hesitou. Pela primeira vez as suas quintas — suas, como ele dizia — não o atraíram. A Feira afagava-lhe o pensamento; o dinheiro tilintava no bolso... Era livre, sem a perseguição dos caseiros e cães de guarda... Não iria às uvas.

Soeiro Pereira Gomes, Esteiros, Círculo de Leitores (pp. 10-12)

 

[No seguimento do post anterior e para quem nunca leu, aqui fica um cheirinho da magnífica prosa de Soeiro Pereira Gomes e da sua grande capacidade narrativa.]