No teu amor por mim há uma rua que começa Nem árvores nem casas existiam antes que tu tivesses palavras e todo eu fosse um coração para elas Invento-te e o céu azula-se sobre esta triste condição de ter de receber dos choupos onde cantam os impossíveis pássaros a nova primavera Tocam sinos e levantam voo todos os cuidados Ó meu amor nem minha mãe tinha assim um regaço como este dia tem E eu chego e sento-me ao lado da primavera
Estás aqui comigo à sombra do sol escrevo e oiço certos ruídos domésticos e a luz chega-me humildemente pela janela e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou
Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama que uso para ser também isto este bicho de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem o que sei o que faço ou então sou eu que julgo que o sabem e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou outra coisa esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço bem entendido o que faço com este braço
Estás aqui comigo e à volta são as paredes e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer
Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro nome embora no mesmo nome este nome de terra de dor de paredes este nome doméstico Afinal fui isto nada mais do que isto as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome que não merda e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das outras coisas Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa uma coisa para além disto que não isto Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos tu és em cada gesto todos os teus gestos e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como a palavra paz Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas perdoa pagares tão alto preço por estar aqui perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer sou isto é certo mas sei que tu estás aqui
As árvores que eu vejo em vez de fruto dão pássaros Os pássaros são o fruto mais vivo das árvores Os pássaros começam onde as árvores acabam Ao chegar aos pássaros as árvores engrossam movimentam-se Deixam o reino vegetal para passar a pertencer ao reino animal Como pássaros poisam as folhas na terra Quando o Outono desce veladamente sobre os campos Gostaria de dizer que os pássaros emanam das árvores Mas deixo essa forma de dizer ao romancista É complicada e não se da bem na poesia Não foi ainda isolada da filosofia Eu amo as árvores principalmente as que dão pássaros Quem é que lá os pendura nos ramos? De quem é a mão a inúmera mão? Eu passo e muda-se-me o coração.
O tempo das suaves raparigas é junto ao mar ao longo das avenidas ao sol dos solitários dias de dezembro Tudo ali pára como nas fotografias É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar És tu surges de branco pela rua antigamente noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher (E nos alpes o cansado humanista canta alegremente) «Mudança possui tudo»? Nada muda nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas Deus anda à beira de água calça arregaçada como um homem se deita como um homem se levanta Somos crianças feitas para grandes férias pássaros pedradas de calor atiradas ao frio em redor pássaros compêndios de vida e morte resumida agasalhada em asas Ali fica o retrato destes dias Gestos e pensamentos tudo fixo Manhã dos outros não nossa manhã pagão solar de uma alegria calma De terra vem a água e da água a alma o tempo é a maré que leva e traz o mar às praias onde eternamente somos Sabemos agora em que medida merecemos a vida
A criança está completamente imersa na infância a criança não sabe que há-de fazer da infância a criança coincide com a infância a criança deixa-se invadir pela infância como pelo sono deixa cair a cabeça e voga na infância a criança mergulha na infância como no mar a infância é o elemento da criança como a água é o elemento próprio do peixe a criança não sabe que pertence à terra a sabedoria da criança é não saber que morre a criança morre na adolescência Se foste criança diz-me a cor do teu país Eu te digo que o meu era da cor do bibe e tinha o tamanho de um pau de giz Naquele tempo tudo acontecia pela primeira vez Ainda hoje trago os cheiros no nariz Senhor que a minha vida seja permitir a infância embora nunca mais eu saiba como ela se diz
Somos seres olhados Quando os nossos braços ensaiarem um gesto fora do dia-a-dia ou não seguirem a marca deixada pelas rodas dos carros ao longo da vereda marginada de choupos na manhã inocente ou na complexa tarde repetiremos para nós próprios que somos seres olhados
E haverá nos gestos que nos representam a unidade de uma nota de violoncelo E onde quer que estejamos será sempre um terraço a meia altura com os ao longe por muito tempo estudados perfis do monte mário ou de qualquer outro monte o melhor sítio para saber qualquer coisa da vida
Que nome dar ao poeta esse ser dos espantos medonhos? um só encontro próprio e justo: o de José o homem dos sonhos
Eu canto os pássaros e as árvores Mas uns e outros nos versos ponho-os Quem é que canta sem condição? É José o homem dos sonhos
Deus põe e o homem dispõe E aquele que ao longo da vereda vem homem sem pai e sem mãe homem a quem a própria dor não dói bíblico no nome e a comer medronhos só pode ser José o homem dos sonhos
Às vezes se te lembras procurava-te retinha-te esgotava-te e se te não perdia era só por haver-te já perdido ao encontrar-te Nada no fundo tinha que dizer-te e para ver-te verdadeiramente e na tua visão me comprazer indispensável era evitar ter-te Era tudo tão simples quando te esperava tão disponível como então eu estava Mas hoje há os papéis há as voltas dar há gente à minha volta há a gravata Misturei muitas coisas com a tua imagem Tu és a mesma mas nem imaginas como mudou aquele que te esperava Tu sabes como era se soubesses como é Numa vida tão curta mudei tanto que é com certo espanto que no espelho da manhã distraído diviso a cara que me resta depois de tudo quanto o tempo me levou ........................................