A hora de amanhecer aproximava-se: o crespúsculo matutino alumiava frouxamente as margens de rio mal-assombrado, que corria turvo e caudal com as torrentes do inverno. Apertado entre ribas fragosas e escarpadas, sentia-se mugir ao longe com incessante ruído. A espaços, destorcendo-se em milhões de fios, despenhava-se das catadupas em fundos pegos, onde refervia, escumava e, golfando em olheirões, atirava-se maciço e atropelando-se a si mesmo, pelo seu leito de rochas, até de novo ruir e despedaçar-se no próximo despenhadeiro. Era o Sália, que de queda em queda, rompia de entre as montanhas e se encaminhava para o mar cantábrico. Perto ainda das suas fontes, o estio via-o passar pobre e límpido, murmurando à sombra dos choupos e dos salgueiros, ora por meio das balças e silvados, que se debruçavam, aqui e acolá, sobre a sua corrente, ora por entre penedias calvas ou córregos estéreis, onde em vão tentava, estrepitando, recordar-se do seu bramido do inverno. Mas quando as águas do céu começavam nos fins do outono a fustigar as faces pálidas dos cabeços, a ossada nua das serras, e a unir-se em torrente pelas gargantas e vales, ou quando o sol vivo e o ar tépido de um dia formoso derretiam as orlas da neve que pousava eterna nos picos inacessíveis das montanhas mais elevadas, o Sália precipitava-se como uma besta-fera raivosa e, impaciente na sua soberba, arrancava os penedos, aluía as raizes das árvores seculares, carreava as terras e rebramia com som medonho, até chegar às planícies, onde o solo o não comprimia e o deixava espraiar-se pelos pauis e juncais, correndo ao mar, onde, enfim, repousava, como um homem completamente ébrio que adormece, depois de bracejar e lidar da embriaguez.
Na margem direita do rio, que então passava grosso de cabedais por um dos vales que retalham as montanhas das Astúrias no seu pendor ocidental, viam-se ainda no princípio do oitavo século as ruínas de antigo castro ou arraial romano. Jaziam estas em uma espécie de promontório de rochas, pendurado sobre a veia de água e talhado quase a pique por todos os lados. Na borda do espaçoso lajedo, que formava como uma eira irregular, avultavam fragmentos de grossos panos de valos de pedra, e no alto de uma ladeira íngreme que conduzia à entrada daquele circuito achavam-se os vestígios de uma porta de campo, provavelmente a pretória: a decúmana, fronteira a ela, fazia, fora do valo, um limitado terreirinho, em cujo topo, e a bastante profundidade, passava o rio negro e veloz com mugido contínuo. Ainda na borda do rochedo aprumado sobre a água se enxergavam alguns orifícios profundos, que mostravam terem servido para embeber as traves de ponte lançada para a outra margem, também elevada e penhascosa. A situação daquelas ruínas, a forma quase circular dos valos e a sua disposição interior evidentemente indicavam um desses hibernáculos ou arraiais de inverno alevantados pelas legiões de Roma nas suas tentativas repetidas e quase sempre inúteis para subjugar os celtiberos das cordilheiras da Cantábria e das Astúrias.
O sol oriental que ora bate ridente no pavimento da igreja aflige a minha alma, porque me parece que, alumiando esta terra condenada, se assemelha a homem cruel que viesse dar uma risada junto ao leito do moribundo.
Por que te havia eu de amar, ó sol, se tu és o inimigo dos sonhos do imaginar; se tu nos chamas à realidade, e a realidade é tão triste?
Pela escuridão da noite, nos lugares ermos e às horas mortas do alto silêncio, a fantasia do homem é mais ardente e robusta.
É então que ele dá movimento e vida aos penhascos, voz e entendimento às selvas que se meneiam e gemem à mercê da brisa noturna.
É então que ele colige as suas recordações; une, parte, transmuda as imagens das existências que viu passar ante si e estampa nas sombras que o rodeiam um universo transitório, mas para ele real.
E é belo esse mundo de fantasmas aéreos, por entre cujos lábios descorados não transpiram nem perjúrio nem dobrez, e a cujos olhos sem brilho não assoma o reflexo de ânimos pervertidos.
Aí há o repouso, a paz e a esperança que desapareceram da terra; porque o mundo das visões cria-o a mente pura do poeta: ela dá corpo e vulto ao que já só é ideal, e o passado, deixando cair o seu imenso sudário, ergue-se em pé e, pondo-se diante do que medita, diz-lhe: - aqui estou eu!
E este o compara com o presente e recua de involuntário terror:
Porque o cadáver que se alevanta do pó é formoso e santo, e o presente que vive e passa e sorri é horrendo e maldito.
E o poeta atira-se chorando ao seio do cadáver e responde-lhe: - esconde-me tu!
É lá que esta alma, árida como a urze, sente, quando aí se abriga, refrescá-la como um orvalho do céu.
Passado o interregno pascal, volto ao bicentenário de Herculano entretanto também recordado no blogue do escritor Manuel Poppe com cujas palavras concordo em absoluto. E deixando de lado a poesia lenta e longa do romantismo herculaneano, vou deixar alguns excertos de um romance histórico - de que Herculano foi mestre exímio, Garrett ainda tentou, mas não conseguiu - que me marcou pela "beleza" de algumas passagens e pela linguagem utilizada (como sói dizer-se, gostos não se discutem!): "Eurico, o Presbítero". Foi o meu primeiro contacto com a prosa poética, como a desse capítulo IV, de que transcrevo uma passagem. É prosa difícil? Acho que sim! É prosa "romântica"? Claro que é!
"IV, 1.
Era por uma destas noites vagarosas do inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trémulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica.
Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemitérios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, sozinho, goteja das bordas das campas, em que só ele chora os mortos. As larvas da imaginação e o gear nocturno afastam do campo-santo a saudade da viúva e do órfão, a desesperação da amante o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam tranquilos nos seus leitos macios!... enquanto os vermes iam roendo esses cadáveres amarrados pelos grilhões da morte. Hipócritas dos afectos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!
E depois, as lousas eram já tão frias! Nos seios do torrão húmido o sudário do cadáver tinha apodrecido com ele.
Haverá paz no túmulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que aí repousa sei eu que há na terra o esquecimento!
Os mares pareciam naquela hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do estio, e a vaga arqueava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia, reflectia a espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.
E o animal que ri e chora, o rei da criação, a imagem da divindade, onde é que se escondera?
Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças rasteiras dos maninhos desertos.
Sem dúvida, o homem é forte e a mais excelente obra da criação. Glória ao rei da natureza que tiritando geme!
Orgulho humano, qual és tu mais - feroz, estúpido ou ridículo?"
A noite escura desce: o Sol de todo Nos mares se atufou. A luz dos mortos, Dos brandões o clarão, fulgura ao longe No cruzeiro somente e em volta da ara: E pelas naves começou ruído De compassado andar. Fiéis acodem À morada de Deus, a ouvir queixumes Do vate de Sião. Em breve os monges, Suspirosas canções aos Céus erguendo, Sua voz unirão à voz desse órgão, E os sons e os ecos reboarão no templo. Mudo o coro depois, neste recinto Dentro em bem pouco reinará silêncio, O silêncio dos túmulos, e as trevas Cobrirão por esta área a luz escassa Despedida das lâmpadas. que pendem Ante os altares, bruxuleando frouxas. Imagem da existência! Enquanto passam Os dias infantis, as paixões tuas, Homem, qual então és, são débeis todas. Cresceste: ei-las torrente, em cujo dorso Sobrenadam a dor e o pranto e o longo Gemido do remorso, a qual lançar-se Vai com rouco estridor no antro da morte, Lá, onde é tudo horror, silêncio, noite. Da vida tua instantes florescentes Foram dois, e não mais: as cãs e rugas, Logo, rebate de teu fim te deram. Tu foste apenas som, que, o ar ferindo, Murmurou, esqueceu, passou no espaço. E a casa do Senhor ergueu-se. O ferro Cortou a penedia; e o canto enorme Polido alveja ali no espesso pano Do muro colossal, que era após era, Como onda e onda ao desdobrar na areia, Viu vir chegando e adormecer-lhe ao lado. O ulmo e o choupo no cair rangeram Sob o machado: a trave afeiçoou-se; Lá no cimo pousou: restruge ao longe De martelos fragor, e eis ergue o templo, Por entre as nuvens, bronzeadas grimpas. Homem, do que és capaz! Tu, cujo alento Se esvai, como da cerva a leve pista No pó se apaga ao respirar da tarde, Do seio dessa terra em que és estranho, Sair fazes as moles seculares, Que por ti, mono, falem; dás na ideia Eterna duração às obras tuas. Tua alma é imortal, e a prova a deste!
Ó Lua silenciosa, Que em perpétuo volver. seguindo a Terra, Esparzes tua luz ameigadora Pela serra formosa, E pelos lagos que em seu seio encerra, Em ti minha alma a eterna cruz adora.
Debalde o servo ingrato No pó te derribou E os restos te insultou, Ó veneranda cruz:
Embora eu te não veja Neste ermo pedestal; És santa, és imortal;
Tu és a minha luz!
Nas almas generosas Gravou-te a mão de Deus, E, à noite, fez nos céus Teu vulto cintilar.
Os raios das estrelas Cruzam o seu fulgor; Nas horas do furor As vagas cruza o mar.
Os ramos enlaçados Do roble, choupo e til Cruzando em modos mil, Se vão entretecer.
Ferido, abre o guerreiro Os braços, solta um ai, Pára, vacila, e cai Para não mais se erguer.
Cruzado aperta ao seio A mãe o filho seu, Que busca, mal nasceu, Fontes da vida e amor.
Surges; símbolo eterno, No Céu, na Terra e mar, Do forte no expirar, E do viver no alvor!
E eu te encontrei, num alcantil agreste, Meia quebrada, ó cruz! Sozinha estavas Ao pôr do Sol, e ao elevar-se a Lua Detrás do calvo cerro. A soledade Não te pôde valer contra a mão ímpia, Que te feriu sem dó. As linhas puras De teu perfil, falhadas, tortuosas, Ó mutilada cruz, falam de um crime Sacrílego, brutal e ao ímpio inútil! A tua sombra estampa-se no solo, Como a sombra de antigo monumento, Que o tempo quase derrocou, truncada. No pedestal musgoso, em que te ergueram Nossos avós, eu me assentei. Ao longe, Do presbitério rústico mandava O sino os simples sons pelas quebradas Da cordilheira, anunciando o instante Da ave-maria; da oração singela, Mas solene, mas santa, em que a voz do homem Se mistura nos cânticos saudosos, Que a natureza envia ao Céu no extremo Raio de sol, pasmado fugitivo Na tangente deste orbe, ao qual trouxeste Liberdade e progresso, e que te paga Com a injúria e o desprezo, e que te inveja Até, na solidão, o esquecimento!
A poesia de Alexandre Herculano é radicada nos salmos bíblicos, em grande parte, pois os românticos eram profundamente religiosos - lembremos Garrett na célebre afirmação: "Cristão sou e cristãos versos faço!" - daí que a temática fundamental de Herculano, na sua obra poética, seja de cariz religioso. Como estamos na Semana Maior ou Santa" deixo aqui alguns poemas nessa linha.
A CRUZ MUTILADA
Amo-te, ó cruz, no vértice, firmada De esplêndidas igrejas; Amo-te quando à noite, sobre a campa, Junto ao cipreste alvejas; Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos, As preces te rodeiam; Amo-te quando em préstito festivo As multidões te hasteiam; Amo-te erguida no cruzeiro antigo, No adro do presbitério, Ou quando o morto, impressa no ataúde, Guias ao cemitério; Amo-te, ó cruz, até, quando no vale Negrejas triste e só, Núncia do crime, a que deveu a terra Do assassinado o pó:
Porém quando mais te amo, Ó cruz do meu Senhor, É, se te encontro à tarde, Antes de o Sol se pôr,
Na clareira da serra, Que o arvoredo assombra, Quando à luz que fenece Se estira a tua sombra,
E o dia últimos raios Com o luar mistura, E o seu hino da tarde O pinheiral murmura.
Faz hoje 200 anos que nasceu este grande romântico português, como já tinha lembrado há dias. Nas suas andanças pelo país fez uma breve paragem pelas nossas terras. As impressões aí ficam:
[1853]
Agosto 22 - Saímos às seis horas para a Guarda a três léguas. (...) Ao lado da Faia a estrada volta à esquerda e começa a subir a montanha: passa-se pela Ramalhosa a pouca altura: pomares e olivedos bem tratados: começa a encosta a tornar-se calva: a estrada arruinada em partes, calçada com grandes pedras parece bem lançada: entrada na Guarda.
[1853]
Agosto 23 a 26 - Guarda povoação insignificante como cidade: muralhas meio demolidas: apenas duas torres na cerca e uma que parece ser a de menagem e no sítio onde devia ser a Alcáçova: a fortificação parece dos fins do XIV ou princípios do XV séc. A Sé: estado do arquivo da Sé. O edifício da época joanina: semelhança das linhas arquitectónicas interiores com as da Batalha: necessidade de demolir as obras exteriores modernas e estúpidas para reduzir este monumento, a mais bela igreja da Beira, ao desenho primitivo. Os guardas do tabaco: parecem uma quadrilha de ladrões: violências deles contra o povo e do povo contra eles. O clima da Guarda: o dia 24 de Agosto semelhante a um dia sereno de Fevereiro. Espectáculo no dia 25 de uma trovoada medonha correndo ao longo do Cimacoa. Ventania e frio na tarde de 26. Aridez e pedregoso por todos os lados da cidade: ao baixo vales férteis.
[1853]
Agosto 27 - Saída da Guarda: seguimos o dorso da serra: à direita num vale a aldeia de Maçainhas que parece populosa: caminhos ásperos e agrestes.
[in Cenas de um ano da minha vida, Apontamento de Viagem, Círculo de Leitores, 1987, págs. 138-139.]
(Retirado, com a devida vénia, de “Guarda Livros - textos e contextos”, selecção e organização de António José Dias de Almeida, edição da Câmara Municipal da Guarda, 2004.)
[É um autor esquecido pelo poder e isso mesmo lembra a imprensa dos últimos dias de que destaco:
No dia 28 de Março, faz 200 anos que nasceu esse grande escritor romântico que foi Alexandre Herculano. Pelo vistos o bicentenário vai passar sem grande alarido na comunicação social porque, além do mais, está praticamente esquecido não só porque foi um perito na utilização do bom português, como também foi um HOMEM de ideias e ideais que defendeu acerrimamente. Como é óbvio pessoas desta estirpe são hoje ignoradas.
Para assinalar a efeméride passarei a recordar a sua obra nos próximos tempos. Começo hoje pelo poeta.
A GRAÇA
Que harmonia suave É esta, que na mente Eu sinto murmurar, Ora profunda e grave, Ora meiga e cadente, Ora que faz chorar?
Porque da morte a sombra, Que para mim em tudo Negra se reproduz, Se aclara, e desassombra Seu gesto carrancudo, Banhada em branda luz?
Porque no coração Não sinto pesar tanto O férreo pé da dor, E o hino da oração, Em vez de irado canto, Me pede íntimo ardor?
És tu, meu anjo, cuja voz divina Vem consolar a solidão do enfermo, E a contemplar com placidez o ensina De curta vida o derradeiro termo?
Oh, sim!, és tu, que na infantil idade,. Da aurora à frouxa luz, Me dizias: «Acorda, inocentinho, Faz o sinal da Cruz.»
És tu, que eu via em sonhos, nesses anos De inda puro sonhar, Em nuvem d'ouro e púrpura descendo Coas roupas a alvejar.
És tu, és tu!, que ao pôr do Sol, na veiga, Junto ao bosque fremente, Me contavas mistérios, harmonias Dos Céus, do mar dormente.
És tu, és tu!, que, lá, nesta alma absorta Modulavas o canto, Que de noite, ao luar, sozinho erguia Ao Deus três vezes santo.
És tu, que eu esqueci na idade ardente Das paixões juvenis, E que voltas a mim, sincero amigo, Quando sou infeliz.
Sinta a tua voz de novo, Que me revoca a Deus: Inspira-me a esperança, Que te seguiu dos Céus!...