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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Sim, sei bem

Sim, sei bem

Que nunca serei alguém.

    Sei de sobra

Que nunca terei uma obra.

    Sei, enfim,

Que nunca saberei de mim.

    Sim, mas agora,

Enquanto dura esta hora,

    Este luar, estes ramos,

Esta paz em que estamos,

    Deixem-me crer

O que nunca poderei ser.

 

Ricardo Reis

Breve o inverno

Breve o inverno virá com sua branca

        Nudez vestir os campos.

As lareiras serão as nossas pátrias

        E os contos que contarmos

Assentados ao pé do seu calor

        Valerão as canções

Com que outrora entre as verdes ervas rijas

        Dizíamos ao sol

O ave atque vale triste e alegre,

        Solenes e carpindo.

Por ora o outono está connosco ainda.

        Se ele nos não agrada

A memória do estio cotejemos

        Com a esperança hiemal.

E entre essas dádivas memoradas

        Como um rio passemos.


 

 Ricardo Reis

Bocas roxas de vinho

Bocas roxas de vinho

Testas brancas sob rosas,

Nus, brancos antebraços

Deixados sobre a mesa:

 

Tal seja, Lídia, o quadro

Em que fiquemos, mudos,

Eternamente inscritos

Na consciência dos deuses.

 

Antes isto que a vida

Como os homens a vivem,

Cheia da negra poeira

Que erguem das estradas.

 

Só os deuses socorrem

Com seu exemplo aqueles

Que nada mais pretendem

Que ir no rio das coisas.


Odes de Ricardo Reis, Fernando Pessoa

Tuas, não minhas, ...

 

Tuas, não minhas, teço estas grinaldas,  
Que em minha fronte renovadas ponho. 
Para mim tece as tuas, 
Que as minhas eu não vejo. 
Se não pesar na vida melhor gozo 
Que o vermo-nos, vejamo-nos, e, vendo, 
Surdos conciliemos 
O insubsistente surdo. 
Coroemo-nos pois um para o outro,  
E brindemos uníssonos à sorte 
Que houver, até que chegue  
A hora do barqueiro.
 
Odes, Ricardo Reis

ODE

Tu, Lídia, sei que odeias

o silêncio e as distâncias,

tal como eu,

 

Mas os deuses não permitem

nem semtimento nem afecto

nem o amor.

 

Para eles reservaram

ambrósia e sensações,

doce mel;

 

Para nós, humanos, deixaram

a razão e uma frieza

amara e reles.

 

Suportemos inscientes

o dia previsto, o amanhã

já destinado;

 

Duremos, pois, cada dia

como a última dádiva

do cruel Fado.

 

30.11.09 

J.M.

 

Lídia

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros

Onde que quer que estejamos.

Lídia, ignoramos. Somos estrangeiros

Onde quer que moremos, Tudo é alheio

Nem fala língua nossa.

Façamos de nós mesmos o retiro

Onde esconder-nos, tímidos do insulto

Do tumulto do mundo.

Que quer o amor mais que não ser dos outros?

Como um segredo dito nos mistérios,

Seja sacro por nosso.

 

Ricardo Reis

É tão Suave a Fuga deste Dia

 

 

É tão suave a fuga deste dia,
Lídia, que não parece, que vivemos.
Sem dúvida que os deuses
Nos são gratos esta hora,

Em paga nobre desta fé que temos
Na exilada verdade dos seus corpos
Nos dão o alto prémio
De nos deixarem ser

Convivas lúcidos da sua calma,
Herdeiros um momento do seu jeito
De viver toda a vida
Dentro dum só momento,

Dum só momento, Lídia, em que afastados
Das terrenas angústias recebemos
Olímpicas delícias
Dentro das nossas almas.

E um só momento nos sentimos deuses
Imortais pela calma que vestimos
E a altiva indiferença
Às coisas passageiras

Como quem guarda a c'roa da vitória
Estes fanados louros de um só dia
Guardemos para termos,
No futuro enrugado,

Perene à nossa vista a certa prova
De que um momento os deuses nos amaram
E nos deram uma hora
Não nossa, mas do Olimpo.

Ricardo Reis