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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

“Café Mondego – Uma Antologia” - Américo Rodrigues

“Café Mondego – Uma Antologia”

Américo Rodrigues

Bosq-ímanos

 

“Um homem com uma cidade dentro.”

Daniel Rocha

 

     A frase em epígrafe da introdução ao livro da autoria de Daniel Rocha, o antologiador, reflete na perfeição o conteúdo deste livro. O autor revela em todos os textos recolhidos e nos que ficaram de fora por opção esse entranhamento da cidade no cidadão Américo Rodrigues. Cidadão consciente, por opção e por atitude, ressuscita a civitas romana: o civis esclarecido, parte integrante da vida da urbe e é essa postura que lhe dá a verticalidade e o faz escrever aquilo que observa na sua cidade. Aquilo que está mal e que critica abertamente sem pruridos de ordem social ou política e louva aquilo que está bem. Propõe ainda alternativas e faz sugestões para melhorar não só a urbe (espaço físico), mas também a referida civitas (espaço cultural). Os textos refletem pois uma cidade vivida por dentro e a partir de dentro com a preocupação de melhorar, de construir e não apenas de destruir criticamente.

    A primeira parte do livro, Imaginar a cidade, compõe-se de textos sobre o espaço citadino e a construção previsível com sugestões, algumas reiteradas, de melhorias desses mesmos espaços. Há um espaço recorrente: a Sé. Talvez por ser um espaço emblemático da cidade. Talvez porque não tem a visibilidade e o tratamento que deveria ter e que merecia ter. Os sinos, o órgão de tubos, o encerramento no Verão deixando os turistas à porta, são assuntos frequentes nestes textos e alguns felizmente falam de aspetos positivos. Outro espaço, muitas vezes objeto de reflexão, é a parte do convento de S. Francisco onde está sediada a GNR. A preocupação gira à volta da saída daquela instituição para o novo quartel previsto já não se sabe há quantos anos (talvez do tempo d’el-rei da Prússsia à maneira garrettiana) mas nunca realizado e não se vê qualquer possibilidade no horizonte. A praça do teatro, proposta em várias ocasiões, é uma sugestão que agrada a qualquer guardense que ame a cidade. Outro tema também repetido é a desertificação da cidade e especialmente dalguns espaços como o centro histórico por óbvia falta de atividades que dinamizem a cidade e “agarrem” os guardenses e os façam sair à rua. Domingos e feriados com as ruas desertas é o habitual numa cidade que, mesmo depois do mamarracho – Vivaci, continuam a procurar as cidades vizinhas para passeios e compras. E tantas outras arremetidas pelo futuro da cidade que se encontram nos textos desta antologia e que gostaríamos de ver concretizadas! Algumas até já o foram como é o caso do roteiro dos espetáculos e das atividades desenvolvidas pelas várias associações elencadas numa publicação para turista e guardense saber.  “Precisamos de reinventar a Guarda. … E afinal o que necessitamos, com caráter de urgência, é … criatividade!” grita o autor num dos textos apontando o caminho à cidade e este grito continua atualíssimo.

     Na segunda parte -  pensar a cultura – a escolha recaiu em textos que meditam sobre áreas diversas da (des)cultura citadina. A arte sacra e o hipotético museu, um museu de arte contemporânea, a criação de salas condignas para a música e acolhimento de artista, a criação de um prémio de âmbito nacional, o melhor aproveitamento de nomes / escritores da cultura local, a cidade como centro cultural do interior são alguns dos sonhos que desfilam pelos textos antologiados. Destaca-se, porque merece uma leitura mais demorada e atenta, a intervenção do autor no dia em que recebeu a medalha das mãos da Ministra da Cultura, e que é um manifesto em defesa da cultura e da cidade.

     A terceira parte – pequenas crónicas da vida na cidade – é constituída por isso mesmo: pequenas crónicas da vida da cidade. Deliciosas crónicas sobre deliciosas personagens. Fantásticas, mas reais. Umas dinâmicas, outras passivas. Umas identificadas, outras identificáveis. A cidade assume-se, então, como uma passerelle onde as figuras revelam as suas potencialidades e as suas debilidades. Masculinas, femininas, indefinidas algumas; corretas, rebeldes, assumidamente transgressoras. Umas intrometem-se na narrativa, outras, porém, afastam-se deliberadamente dela. Por desejo próprio? Não, porque o cronista assim o quer. E, afinal, ele próprio se passeia como personagem fantástica num mundo de ficção em que apenas o chão da cidade é real. O resto … é a imaginação como palco, ou não fosse um homem do teatro!

     E, nem de propósito, surge o teatro da vida. A quarta parte leva-nos para diálogos e monólogos breves. O autor dramático a beber na vida (ir)real como fonte de inspiração inesgotável da peça de teatro que é a vida. Muita comédia, alguma tragédia mas dramatismo suficiente para o leitor perceber que tudo emana teatro. É a arte dramática encenada por atores amadores (ou não) que o autor consegue captar como só ele sabe.

     Seguem-se duas partes mais pequenas mas muito interessantes: narrativas curtas e notas quase diarísticas. Apontamentos breves sobre realidades breves, mas não leves. Trazem na sua pequenez os gérmenes que levam necessariamente à reflexão. E também memórias de mortes sentimentalmente presas ao autor. E referências a pessoas de referência para o autor e para a cidade. Memórias do passado mas com o olhar posto no futuro. Na cidade.

   E termina-se a Antologia com um EXIT. Que decididamente não é exit. Conscientemente é um forte e não repudiado incipit para quem for amante da sua / nossa cidade como o autor é. Ao longo dos textos ficam as ânsias de melhoria para uma cidade que é a amante ou esposa nunca desprezada. Amada sim. E o fim do Café Mondego, não é o fim da luta. Porque o autor, apesar do ponto final, continuará (“E … pronto. Vou andar por aí. A tentar viver a vida.”) a caminhar e a construir uma cidade que muitas vezes lhe virou injustamente as costas. Um homem com uma cidade dentro e sempre dentro da cidade.

 

 

José Monteiro

 

[Recensão publicada no último número da "Praça Velha"]

POEMAS DE AMOR E MELODIA - CRISTINO CORTES (recensão -PraçaVelha, nº27)

Poemas de amor e melodia, Cristino Cortes

 

“Há poetas que quase naturalmente nos vão servir para

Imitar, …”

(Poetas em negativo I, p. 79)

“E um poema basta, pode dar a medida que persiste.”

(Poetas em negativo II, p. 80)

 

    Os poemas novos deste livro confirmam aquilo que já sabíamos do autor: a sua poesia é adulta e exprime uma sábia simbiose entre o clássico e o moderno. Podemos mesmo arriscar que são estas as duas principais marcas destes poemas.

    Assim, em primeiro lugar, em quase todos eles encontramos influências dos grandes poetas nacionais no plano temático. Se nalguns poemas essa influência vem explícita nas dedicatórias iniciais, noutros ela aparece dispersa ao longo do desenvolvimento dos temas em si. No primeiro caso, encontramos referências a Jorge de Sena (p.23), Vitorino Nemésio (p. 66 e 67), Ruy Belo (p.29), Herberto Hélder (46), Augusto Gil (p. 80), Sá-Carneiro (p.73), Fernando Pessoa(p. 88), etc..  Ora esta enumeração vem confirmar as intertextualidades patentes ao longo de todo o livro com autores da nossa literatura. Mas, como referimos acima, há outros poemas cujos versos nos lembram indirectamente esses clássicos, como é o caso do poema “Do amor adulto” (p.21), onde é visível a presença de Camões. Ou então aqueles onde sentimos a presença de Pessoa e seus heterónimos (que é aliás o autor mais frequentemente encontrado): por exemplo no poema “Jamais” (p. 71), logo o primeiro verso nos remete para Ricardo Reis – “Jamais dão os inocentes deuses seja o que for” – e para a sua filosofia estóica; ou no poema “Ode vespertina” onde há uma referência explícita ao heterónimo pessoano logo a abrir – “Meu bom Ricardo Reis na tua companhia” – passando a tratar o carpe diem tão ao gosto ricardiano; podemos referir ainda o poema “Ode à Cafeína” (p. 30)  cujo título nos remete para Álvaro de Campos e em que o estilo utilizado é precisamente o esfusiante torrencial do engenheiro naval.

    A faceta clássica pode também ser observada na parte formal. Nas estrofes, o autor usa a regularidade com preferência pela quadra complementada muitas vezes com o dístico a terminar os poemas e, como noutros livros, amiúde encontramos o soneto shakespeariano. Já em relação ao verso, a frequência maior é de versos longos quer decassílabos, quer alexandrinos o que permite poemas reflexivos e narrativos, alternando com poemas de versos octossílabos mais leves e mais modernos também. De salientar ainda, na parte formal, a utilização da rima um pouco de modo intermitente e variando entre a consoante e a toante, como podemos observar na primeira quadra do poema “A beleza feminina II” (p.17): a rima entre o primeiro e o quarto versos é toante – tonalidade / tarde – enquanto que a do segundo e terceiro versos é consoante. Encontramos também rimas em eco ou internas [intervaladas / espaçadas – verso 2 do poema “O fim do Verão” (p. 52)] ou mesmo rima encadeada – dão / infracção: fim do verso 3 e meio do verso 4 da segunda estrofe ( poema da página 46).

    Em segundo lugar, a poesia deste livro é moderna, não só porque radica na contemporaneidade, mas porque gere as influências recebidas com estilo próprio onde se destacam a espontaneidade, a oralidade e o quotidiano. Já acima referimos a “Ode à cafeína” (p. 30) cujo tema é evidentemente moderno e porque retrata no estilo o frenético efeito da mesma; ou a actualidade do “Solta e livre a imaginação” (p. 36); ou o quotidiano de “Delícias de pai” (p. 41), “Melancólico moralista” (p. 43), “Segunda-feira” (p. 51) e tantos outros. Embora não sendo algo moderno, destaca-se também a presença da ironia que perpassa em muitos versos e que é um topos da poesia portuguesa em geral, mas que Garrett reforçou na modernidade poética nacional: por exemplo no poema “O tema do namorado” (p. 14) aquele “colofon” dos últimos sete versos é delicioso na suave ironia que nos lembra o pícaro Veloso de “Os Lusíadas”. Podíamos ainda referir a espontaneidade e naturalidade quer do dístico final do “Do Amor adulto I” (p. 20), quer do “Quem dormir na minha cama” (p. 24) e reforçar a reflexão valorativa do “Os filhos da televisão” (p. 75).

    Retomando o início e à laia de conclusão, diríamos que os poemas quer reeditados quer novos deste livro vêm confirmar a poética exímia deste autor misturando com mestria o clássico retomado e o moderno vivido. E é esta conjunção de duas forças aparentemente antagónicas, mas que afinal se complementam que reside a grandeza desta poesia “firme, fértil e universalista” no dizer crítico de João Barroso da Fonte.

 

 

Guarda, 17 de Novembro de 2009

José Monteiro