Foi para ti que desfolhei a chuva para ti soltei o perfume da terra toquei no nada e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras e todas me faltaram no minuto em que talhei o sabor do sempre
Para ti dei voz às minhas mãos abri os gomos do tempo assaltei o mundo e pensei que tudo estava em nós nesse doce engano de tudo sermos donos sem nada termos simplesmente porque era de noite e não dormíamos eu descia em teu peito para me procurar e antes que a escuridão nos cingisse a cintura ficávamos nos olhos vivendo de um só amando de uma só vida
O nosso Manuel António Pina é o Prémio Camões deste ano, com unanimidade do júri. Poeta, jornalista e autor de saborosas crónicas, natural do Sabugal, está ligado afectivamente à Guarda que há uns anos lhe prestou homenagem.
Completas
A meu favor tenho o teu olhar testemunhando por mim perante juízes terríveis: a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam à noite na solidão do quarto refugiam-se em fundos sítios dentro de mim quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar, dos demónios da noite e das aflições do dia, fala em voz alta, não deixes que adormeça, afasta de mim o pecado da infelicidade.
Manuel António Pina, in “Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância”