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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Demissão

 

Se pudesse escrevia um poema sem palavras.
As palavras não existem. Já nada dizem
Do que antes era. Antes
Quando o medo era sombra inexistente
E era possível aos homens falar de amor.
Agora há só o espantalho do medo,
As bocas negras, a fome negra,
E o uivo dos cães mudos nas noites desertas e distantes.
Antes havia feras e cristão para as feras.
Agora, ou porque tudo são feras,
Ou porque já não há cristãos
(E há só o medo, o pavor, a fome,
As cumplicidades carnais ao topo dos ventos,
E o ridículo de se ter medo: o pasto das trevas)
A semente de Deus anda à deriva sem leira onde se acoite.

- Espuma, sonho, aurora, canto? - palavras ausentes.
No galeão da vida, haverá de novo bodas de sangue
Para que do Mar volte para a Terra
O viço e a alegria das novas sementes.


Vasco Miranda, A Vida Suspensa

M. A. Pina

A um Jovem Poeta
 
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina, in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"

...

(Sabugal, 1943 - Porto, 2012)

Manuel António Pina era reconhecido como um dos melhores cronistas de língua portuguesa

 

A morte e a vida morrem 
e sob a sua eternidade fica 
só a memória do esquecimento de tudo; 
também o silêncio de aquele que fala se calará. 

Quem fala de estas 
coisas e de falar de elas 
foge para o puro esquecimento 
fora da cabeça e de si. 

O que existe falta 
sob a eternidade; 
saber é esquecer, e 
esta é a sabedoria e o esquecimento. 

"Aquele que Quer Morrer"

o horizonte que inventaste

(À minha mãe)


Rompeste com as montanhas
e atravessaste as tempestades
com o intelecto de alguém
que procura na imensidão
dos dias uma justificação
para andar.

Procuraste nas entrelinhas
das sensações e das ilusões
uma razão para nos trazeres
vestidos e aprumados
para as agruras da vida
que não conseguias evitar.

Da fome e das carências soubeste
tirar o melhor
e, interiorizando a coragem,
cresceste com a energia do ar e das flores
multiplicaste a força e a vontade
e distribuíste a graciosidade e a beleza.

Enfim, percorreste os desertos
e encontraste as miragens
reais numa complexa matriz
de dor e suor e sangue e esperança.

 
Daniel Rocha
[Roubado daqui: http://silenciosasdiscussoes.blogspot.pt/2012/04/o-horizonte-que-inventaste.html?spref=fb ]

aviso: frio - Américo Rodrigues

 

avisam-te do frio
que aí vem
fecha-te em casa
foge ao frio
e
à memória
do frio
da neve
do gelo
acende a lareira
queima os galhos
do castanheiro do avô
enrola-te no velho
cobertor de papa
e
fica aí parado
querem-te assim
quieto
paralisado pelo calor
corpo indolente
dormente
não saias à rua
não vás escorregar
por acaso
no que resta
de ti!

1/2/12
Américo Rodrigues

Aviso a um navegador de jardins feio! - Daniel Rocha

 (a Manuel António Pina)


Alimenta-te da rosa!
Busca-a incessantemente
Perscrutando montes
E ribeiros
E até algumas
Lixeiras.

Coloca-a na grosa
Afinando as suas
Curvas petalares
E multiplicando
Os seus ais.

Relembra-lhe a
Infância, semente
De tempos perdidos
Envolta em manto
Morto e
Nauseabundo.

Então, talvez...
Nota que a sua beleza
Passa, rápida e mutável,
E a tua solidifica,
Onde ninguém a vê!

(20/01/2010)

LONDRES - manuel a. domingos


 

nunca cheguei a escrever um poema sobre

a cidade ser à noite um carrossel

de luzes. nem outro sobre

a fotografia onde fiquei com ar

envergonhado. ou sobre o frio e

o passeio por Hyde Park, onde

pássaros vieram comer às tuas mãos

e eu deixei fugir alguns versos

só para te poder fotografar. ou sobre

a casa estilo vitoriano, que prometeu

ocultar todas as palavras que dissemos

um ao outro, quando ao deitar

nos encolhíamos debaixo de

vários cobertores e mesmo assim

tínhamos frio. ou o definitivo,

aquele que falaria sobre Greenwich

e o meridiano que me ensinou a importância

do tempo que sempre falta, principalmente

quando numa das pontes quis dizer amo-te,

mas havia um autocarro para

apanhar. e era já o último.

 

 

manuel a. domingos in mapa