Inopinadamente a tarde deixou-se dominar pelos gatos selvagens; inadvertidamente a andorinha poisou no resto do fio telefónico que corta os ares dos subúrbios da cidade descansada;
quando o gato saltou apanhou apenas a cidade pois a andorinha exímia acordara a tempo avisada pela chamada do destino na inopinada linha telefónica.
[Aproveito para desejar a todos os frequentadores deste recanto pessoal umas óptimas Festas de Natal e um 2013 cheio de poesia e saúde. Que nunca falte a vontade de mudar o mundo!]
Há 25 anos não havia trovoada, nem condições para existir, mas a notícia caiu em nós com os efeitos dramáticos da perda. O teu coração parava, depois de uma luta persistente. Deixava-nos a tua essência de pai, orientador da família, de nós. O teu espírito permanece connosco, hoje à distância destes tempos vividos. Continuas vivo porque te lembramos, porque estás em nós, porque estás connosco. Ainda. Enquanto houver memória.
Hoje, quase à beira do fim de um maio específico
fico à espera que a noite te devolva a vida
roubada num dia final como hoje.
Busco em mim as memórias de ti
e vejo-te
no tempo da aldeia
dominante no espírito honesto
de quem doma a terra
dando exemplos pelo exemplo.
Anoiteceste um dia como hoje.
As memórias de ti espalharam-se
pelos espaços que ainda são teus:
a casa, o chão, os cômaros,
os lameiros, os pinhais, ...
sei lá, os espaços marcados
pela tua ternura paterna.
A lua continua lá, mas já não é a mesma.
E a noite opaca revive-te apenas na memória dos gestos.
Original é o poeta que se origina a si mesmo que numa sílaba é seta noutra pasmo ou cataclismo o que se atira ao poema como se fosse ao abismo e faz um filho às palavras na cama do romantismo. Original é o poeta capaz de escrever em sismo.
Original é o poeta de origem clara e comum que sendo de toda a parte não é de lugar algum. O que gera a própria arte na força de ser só um por todos a quem a sorte faz devorar em jejum. Original é o poeta que de todos for só um.
Original é o poeta expulso do paraíso por saber compreender o que é o choro e o riso; aquele que desce à rua bebe copos quebra nozes e ferra em quem tem juízo versos brancos e ferozes. Original é o poeta que é gato de sete vozes.
Original é o poeta que chega ao despudor de escrever todos os dias como se fizesse amor.
Esse que despe a poesia como se fosse mulher e nela emprenha a alegria de ser um homem qualquer.
das pedras no sítio húmido da noite nos interstícios da pele ferida no avesso do verso adverso não me acordes mais não me acordes tanto
Américo Rodrigues 23/9/11
Foi ontem à tarde a apesentação do "acidente poético fatal" na BMEL. Foi tempo de amizades e aprendizagens. Foi tempo de ouvir e assimilar. Foi tempo de palavras. Essas entidades dotadas de vida própria e que nunca estão completas enquanto houver alguém que as aprecie e as tente desvendar. Como faz o Américo. E bem!
Transcrevo acima o poema de que mais gosto (também eu!). Além de outros.
Parabéns à poesia e ao autor.
[Quem tiver curiosidade - e vale a pena satisfazê-la - pode seguir a sugestão do próprio autor:
"A partir de agora, o livro vai à sua vida. Vende-se, na Guarda, no Quiosque Moinho (ao lado deste Café Mondego), no centro da cidade. Pode também pedir-se por mail: americo.j.rodrigues@sapo.pt"]
“Há poetas que quase naturalmente nos vão servir para
Imitar, …”
(Poetas em negativo I, p. 79)
“E um poema basta, pode dar a medida que persiste.”
(Poetas em negativo II, p. 80)
Os poemas novos deste livro confirmam aquilo que já sabíamos do autor: a sua poesia é adulta e exprime uma sábia simbiose entre o clássico e o moderno. Podemos mesmo arriscar que são estas as duas principais marcas destes poemas.
Assim, em primeiro lugar, em quase todos eles encontramos influências dos grandes poetas nacionais no plano temático. Se nalguns poemas essa influência vem explícita nas dedicatórias iniciais, noutros ela aparece dispersa ao longo do desenvolvimento dos temas em si. No primeiro caso, encontramos referências a Jorge de Sena (p.23), Vitorino Nemésio (p. 66 e 67), Ruy Belo (p.29), Herberto Hélder (46), Augusto Gil (p. 80), Sá-Carneiro (p.73), Fernando Pessoa(p. 88), etc.. Ora esta enumeração vem confirmar as intertextualidades patentes ao longo de todo o livro com autores da nossa literatura. Mas, como referimos acima, há outros poemas cujos versos nos lembram indirectamente esses clássicos, como é o caso do poema “Do amor adulto” (p.21), onde é visível a presença de Camões. Ou então aqueles onde sentimos a presença de Pessoa e seus heterónimos (que é aliás o autor mais frequentemente encontrado): por exemplo no poema “Jamais” (p. 71), logo o primeiro verso nos remete para Ricardo Reis – “Jamais dão os inocentes deuses seja o que for” – e para a sua filosofia estóica; ou no poema “Ode vespertina” onde há uma referência explícita ao heterónimo pessoano logo a abrir – “Meu bom Ricardo Reis na tua companhia” – passando a tratar o carpe diem tão ao gosto ricardiano; podemos referir ainda o poema “Ode à Cafeína” (p. 30) cujo título nos remete para Álvaro de Campos e em que o estilo utilizado é precisamente o esfusiante torrencial do engenheiro naval.
A faceta clássica pode também ser observada na parte formal. Nas estrofes, o autor usa a regularidade com preferência pela quadra complementada muitas vezes com o dístico a terminar os poemas e, como noutros livros, amiúde encontramos o soneto shakespeariano. Já em relação ao verso, a frequência maior é de versos longos quer decassílabos, quer alexandrinos o que permite poemas reflexivos e narrativos, alternando com poemas de versos octossílabos mais leves e mais modernos também. De salientar ainda, na parte formal, a utilização da rima um pouco de modo intermitente e variando entre a consoante e a toante, como podemos observar na primeira quadra do poema “A beleza feminina II” (p.17): a rima entre o primeiro e o quarto versos é toante – tonalidade / tarde – enquanto que a do segundo e terceiro versos é consoante. Encontramos também rimas em eco ou internas [intervaladas / espaçadas – verso 2 do poema “O fim do Verão” (p. 52)] ou mesmo rima encadeada – dão / infracção: fim do verso 3 e meio do verso 4 da segunda estrofe ( poema da página 46).
Em segundo lugar, a poesia deste livro é moderna, não só porque radica na contemporaneidade, mas porque gere as influências recebidas com estilo próprio onde se destacam a espontaneidade, a oralidade e o quotidiano. Já acima referimos a “Ode à cafeína” (p. 30) cujo tema é evidentemente moderno e porque retrata no estilo o frenético efeito da mesma; ou a actualidade do “Solta e livre a imaginação” (p. 36); ou o quotidiano de “Delícias de pai” (p. 41), “Melancólico moralista” (p. 43), “Segunda-feira” (p. 51) e tantos outros. Embora não sendo algo moderno, destaca-se também a presença da ironia que perpassa em muitos versos e que é um topos da poesia portuguesa em geral, mas que Garrett reforçou na modernidade poética nacional: por exemplo no poema “O tema do namorado” (p. 14) aquele “colofon” dos últimos sete versos é delicioso na suave ironia que nos lembra o pícaro Veloso de “Os Lusíadas”. Podíamos ainda referir a espontaneidade e naturalidade quer do dístico final do “Do Amor adulto I” (p. 20), quer do “Quem dormir na minha cama” (p. 24) e reforçar a reflexão valorativa do “Os filhos da televisão” (p. 75).
Retomando o início e à laia de conclusão, diríamos que os poemas quer reeditados quer novos deste livro vêm confirmar a poética exímia deste autor misturando com mestria o clássico retomado e o moderno vivido. E é esta conjunção de duas forças aparentemente antagónicas, mas que afinal se complementam que reside a grandeza desta poesia “firme, fértil e universalista” no dizer crítico de João Barroso da Fonte.