Lugares
Regresso devagar aos lugares da minha infância
Lentamente para poder saborear
Os aromas, as brincadeiras, a abundância
De carinhos, as paixões e o luar!
J M
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Regresso devagar aos lugares da minha infância
Lentamente para poder saborear
Os aromas, as brincadeiras, a abundância
De carinhos, as paixões e o luar!
J M
Um dia é preciso parar,
a vida exige uma pausa.
O silêncio sabe-nos bem. Olhar
para trás e saber a causa,
inventariar o tempo. Esperar.
Esperar o quê? Tanta coisa:
às vezes o que merecemos
outras vezes o que não queremos;
às vezes o que desejamos
outras vezes o que evitamos;
às vezes a alegria
outras a acre azia; …
E quem melhor que a noite,
secretária de meus cansaços,
que nos silêncio nos acoite
no aconchego dos seus braços?
Há dias em que temos de parar!
J M
Senhor, sinto-me hoje perdido:
já não há paz, não há sossego,
vivo na inquietude, desiludido
com o homem que só impõe o medo.
Do oriente ao ocidente tudo muda,
a fragilidade é nossa companheira,
a rapacidade é comum e pontiaguda,
a vida é efémera e passageira.
Que esperança, então, pode sobreviver
neste universo corrupto em decadência?
O dinheiro, as finanças e o poder
vão destruindo os limites da decência.
Resta a esperança de que a chama vinda
das cinzas leves da Fénix imolada
renasça a ordem e mantenha ainda
a hipótese da ressurreição desejada.
J M 03.2017
(Foto de Carlos Adaixo)
Um pilar apagado
sustenta o céu cinzento
entrecortado
por olhos de vento
espreitando
desperto entre nuvens
entrelaçando
os dedos divinos
sistinos
(de Miguel Ângelo).
Sentado no banco sombrio
Deus prepara a recriação
de outro Adão
mais humilde e sóbrio.
J M 10.03.2017
Deixei-me levar p’la aventura do medo,
vivi experiências desertas de fugas,
fechei as portas à vida e à morte,
tranquei-me por dentro do desespero.
Vigiei pedaços de aventura louca,
corri paixões à espera de lucro,
no fim de tudo não ficou nada
porque a ânsia era desmedida.
Gastei pedaços à espera do tempo
mas este fugiu para fora de mim
e na tarde infinita do sábado imenso
encontrei-me só num mundo-penedo.
Louvei aos montes a sua grandeza
cantei à vida a grande desgraça,
perdi-me tonto na hora da natureza:
fiquei parado na aventura do medo.
J M
O pintor morreu
envolto em rosas de maio,
olhando os meninos do Bairro Negro,
cantando os cravos rubros
de um abril florido.
Em Grândola poeta-libertador,
dum povo adormecido,
na longa noite de 33;
em abril soldado em flor
que desabrochou a 24,
numa manhã ingente e fresca
florida em liberdade.
Na noite, cantor-maldito
de vampiros e eunucos
cuja voz rompeu os tímpanos
de absurdos assombros:
Peniche, Caxias, Tarrafal.
Em Coimbra, amigo do vento
levado do Choupal à Lapa
nas brisas ternas dos sonhos
até aos filhos da madrugada.
Em Portugal poeta-músico
cujo machado não corta
a enraizada lembrança
gravada a palavras-fogo
no peito da nossa memória.
E se alguém se enganou
com seu olhar modesto
verá correr as águas claras
dos mananciais da música
que guardam perenemente
a timbrada voz universal
de abril-liberdade!
J M (23.02.1987)
Caminho na luz débil do entardecer
ao longo da praia do teu corpo;
no horizonte ouvem-se a descer
as pregas do teu silêncio. Porto
de abrigo, o teu aroma perfumado
rescende à seiva da terra ávida
no pousio de um inverno gelado
preparando o renascer de calma vida.
Rebentos, as tuas mãos remetem
às colheitas fartas lá para setembro;
agora, vejo teu perfil estampado
no início de nova criação e lembro
as primaveras havidas no passado.
As curvas dos beijos tanto prometem!
J M - 19.02.2017
para o Luís Filipe Cristóvão
Éramos os últimos
no café quando decidimos
regressar.
Os nossos passos — trocados
pela hora a mais que a lei do tempo
impõe — percorreram as ruas
desertas, onde a qualquer momento
esperei ver um coiote
atravessar-se no caminho,
não perguntes porquê.
No hotel entrámos a rir,
a falar alto.
Evocávamos sem saber
as ninfas desse rio Tago
cujo nome soa melhor
em português.
Até que alguém apareceu
e pediu silêncio.
Por qualquer motivo tínhamos esquecido
que a poesia quer-se
a horas decentes.
manuel a. domingos, em Sulscrito, Revista de Literatura, nº 2, Faro: ARCA – Associação Recreativa e Cultural do Algarve, 2008, p. 12.
O tempo das suaves raparigas
é junto ao mar ao longo das avenidas
ao sol dos solitários dias de dezembro
Tudo ali pára como nas fotografias
É a tarde de agosto o rio a música o teu rosto
alegre e jovem hoje ainda quando tudo ia mudar
És tu surges de branco pela rua antigamente
noite iluminada noite de nuvens ó melhor mulher
(E nos alpes o cansado humanista canta alegremente)
«Mudança possui tudo»? Nada muda
nem sequer o cultor dos sistemáticos cuidados
levanta a dobra da tragédia nestas brancas horas
Deus anda à beira de água calça arregaçada
como um homem se deita como um homem se levanta
Somos crianças feitas para grandes férias
pássaros pedradas de calor
atiradas ao frio em redor
pássaros compêndios de vida
e morte resumida agasalhada em asas
Ali fica o retrato destes dias
Gestos e pensamentos tudo fixo
Manhã dos outros não nossa manhã
pagão solar de uma alegria calma
De terra vem a água e da água a alma
o tempo é a maré que leva e traz
o mar às praias onde eternamente somos
Sabemos agora em que medida merecemos a vida
Ruy Belo
Essa criança esquelética e nua
que encontramos às vezes por aí,
chama-nos egoístas a mim e a ti
quando nos cruzamos com ela na rua!
O rosto ansioso,
a avidez do olhar,
as rugas da face,
a tristeza da pele,
atiram-nos pedidos
em apelos mudos
no sulco profundo
da sua voz sumida.
Suas mãos ósseas
rasgadas nos caixotes
e que no lixo sobrevivem,
levantam-se caladas
numa prece angustiante,
num apelo premente
que os humanos não ouvirão!
Criança! Agora apenas criança!
Mais tarde quiçá marginal,
mero mas impressivo sinal:
o mundo é sem-esperança!
J M