Outono
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Os dedos entreabertos
deixam passar a luz de ser;
coam o tempo dos raios de sol,
outonais e desmaiados,
nas folhas amarelecidas
ou nos galhos quase nus,
- ossos negros do parecer;
pintores da decadência,
pensamentos de pré-inverno
reflectem alguma decência,
nos quadros do inferno.
Cidade soprada a chuviscos
e lavada em ventanias:
assinam violentos rabiscos,
apagam mágoas e alegrias.
05.11.2009
JM
Entre o céu azul, com algumas nuvens, e os ramos já despidos, os restos das folhas coloridas prenunciam o inverno iminente.
Parece Verão pela temperatura diurna, mas o pintor outonal vai deixando impressas as suas marcas pela natureza. E os olhos agradecem!
O outono já chegou - aos arrufos do vento
as folhas num desmaio embalam-se pelo ar...
- vão caindo... caindo... uma a uma, em desalento
e uma a uma, lentamente, vão no chão pousar...
O céu perdeu o azul - vestiu-se de cinzento
e envolveu na neblina a luz baça do luar...
- na alameda onde vou, de momento a momento,
há um gemido de folha a cair e a expirar...
O arvoredo transpira as carícias dos ninhos,
e o vento a cirandar na curva das estradas
eleva o folharéu no espaço em redemoinhos...
Há um córrego a levar as folhas secas em bando...
- e à aragem que soluça entre as ramas curvadas,
parece que o arvoredo em coro está chorando!...
J. G. de Araújo Jorge
[Poeta brasileiro nasceu em 1914, na Vila de Tarauacá e morreu em 1987. Mais informações aqui]
"Quando levantou da cama no lusco-fusco da manhã, com grande espanto seu, deu de cara com uma camada de neve que, embora mansíssima, tão densa viera que estendera sem a mínima quebra o seu lençol pela serra toda. Teotónio não a sentira no seu ninho de feno e o Farrusco parecia tão admirado como ele. De ordinário Teotónio podia de manhã ser surpreendido pela neve, mas não que estivesse inadvertido da sua chegada. Lia-a no cariz do céu, no meneio das aves, nos insectos que suspendiam a zanguizarra, na agitação do cachorro, mais atanazado das pulgas, nas plantas que, muito hirtas e graves, esperam a neve como uma epifania. Já se sabe, não faz barulho nem bate à porta como a chuva, ou como o vento. Mas a ele bastava-lhe o olfacto para a sentir a sete léguas de distância. Observando o horizonte, conhecia se nevava dos lados da Estrela, ou de cantaril, que é a mais dominiosa, ou dos lados de Montemuro a brava e rota. Velhaca e traiçoeira era a que vinha das bandas de suão, tanto assim que lhe chamavam a ladroa. Neve de má raça! Essa não precisava que lhe abrissem as portas, irrompia pelas frinchas e gretas dos telhados sem pedir licença a ninguém. Às duas por três, estava metida na cama com um santo, sem se saber por onde viera. Lá fora, nos braços do cieiro, era uma rascoa de mitra e gaita. Cortava a carne como se trouxesse uma navalha de fadista. Na manhã, o mundo era um lençol de defuntos. O degelo levava às vezes dias. Devagar tomava à sua feição e Teotónio assistia aquilo como ao regresso interessado e impaciente dum cativo.
Às vezes fazia luar e Teotónio especava-se no traço da cabana a vê-la cair, zebrando o céu com a sua farfalha, aquela farinha mal moída que caía sem relego, uma após outra, uma após outra, como se a Lua fosse a moega. Outras vezes, engoiado no casulo de palha, dava fé pelo alicate que lhe aperrava a orelha ou pelo abambar das giestas no tecto da cardenha sob o peso desconforme."
Aquilino Ribeiro, Quando os lobos uivam
Já divulguei por aqui vários poemas deste nosso autor, com o objectivo de dar a conhecer outras facetas da sua poesia, porque praticamente só é conhecido pela Balada da Neve e pouco mais. Hoje volto à sua obra, por causa do Outono que se anuncia cada vez mais real e porque me lembrei dum seu poema, dos mais conhecidos, eivado de simpatia para com os sofredores, dentro da linha da piedade cristã mais franciscana e mais terna. O poema vale também pela harmonia e pela musicalidade das palavras.
O Outono chega lento e atento às cores dum céu pálido, onde o azul desmaia em policromias de tons incríveis e belos. Pintor exímio, do verde faz milagres de transfigurações e tudo relaxa na natureza. Fica, no entanto, a dor da perda do azul saudável do Verão.
O Outono anuncia-se paulatinamente. São as manhãs frias cheias de gotículas faiscantes enamoradas dos raios de sol que as vem beijar às primeiras horas da manhã. São as sombras frescas contrastantes com as tórridas e doentias soalheiras. São as tardes efervescentes de bandos traiçoeiros de mosquitos ávidos das últimas frutas demoradas nas árvores apodrecidas. São as noites a cheirar a lume atractivas pelo conchego das casas e pela brisa fria do norte impiedoso. Tudo começa a cheirar a Outono - apesar do sol teimosamente continuar intenso e doentio - até as tardes de Domingo com esse silêncio nostálgico que nos torna moles e desejosos do sofá televiso e alienante. A não ser que façamos como o heterónimo de Pessoa:
Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz — eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo. —
Nunca domingo. —
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sutil para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,
Não no nosso domingo,
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo!