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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Outono

outono.jpg

 

 
Viam-se nas gotículas matinais do nevoeiro,
finas farpas que feriam a pele,
como o duro frio matinal;
 
também o vento, sorrateiro,
sacudia algumas folhas cor de mel
que tombavam no chão, afinal;
 
mesmo os teus olhos afanosos
que faiscavam nos outros dias
hoje estavam bastante incertos.
 
Ah! outono dos saudosos!
vieste com tuas bizarras fantasias:
cuidado, coração: olhos abertos!
 
J M
22.09.2016

outonais

 

 

Os dedos entreabertos

deixam passar a luz de ser;

coam o tempo dos raios de sol,

outonais e desmaiados,

nas folhas amarelecidas

ou nos galhos quase nus,

- ossos negros do parecer;

pintores da decadência,

pensamentos de pré-inverno

reflectem alguma decência,

nos quadros do inferno.

 

Cidade soprada a chuviscos

e lavada em ventanias:

assinam violentos rabiscos,

apagam mágoas e alegrias.

 

05.11.2009

JM

 

Outono

 

    Entre o céu azul, com algumas nuvens, e os ramos já despidos, os restos das folhas coloridas prenunciam o inverno iminente.

 

 

OUTONO

O outono já chegou - aos arrufos do vento
as folhas num desmaio embalam-se pelo ar...

- vão caindo... caindo... uma a uma, em desalento
e uma a uma, lentamente, vão no chão pousar...

 

O céu perdeu o azul - vestiu-se de cinzento 
e envolveu na neblina a luz baça do luar...
- na alameda onde vou, de momento a momento,
há um gemido de folha a cair e a expirar...

 

O arvoredo transpira as carícias dos ninhos,
e o vento a cirandar na curva das estradas
eleva o folharéu no espaço em redemoinhos...

 

Há um córrego a levar as folhas secas em bando...
- e à aragem que soluça entre as ramas curvadas,
parece que o arvoredo em coro está chorando!... 

 

J. G. de Araújo Jorge

 

[Poeta brasileiro nasceu em 1914, na Vila de Tarauacá e morreu em 1987. Mais informações aqui]

 

 

 

NEVE

 

 

 

 

   "Quando levantou da cama no lusco-fusco da manhã, com grande espanto seu, deu de cara com uma camada de neve que, embora mansíssima, tão densa viera que estendera sem a mínima quebra o seu lençol pela serra toda. Teotónio não a sentira no seu ninho de feno e o Farrusco parecia tão admirado como ele. De ordinário Teotónio podia de manhã ser surpreendido pela neve, mas não que estivesse inadvertido da sua chegada. Lia-a no cariz do céu, no meneio das aves, nos insectos que suspendiam a zanguizarra, na agitação do cachorro, mais atanazado das pulgas, nas plantas que, muito hirtas e graves, esperam a neve como uma epifania. Já se sabe, não faz barulho nem bate à porta como a chuva, ou como o vento. Mas a ele bastava-lhe o olfacto para a sentir a sete léguas de distância. Observando o horizonte, conhecia se nevava dos lados da Estrela, ou de cantaril, que é a mais dominiosa, ou dos lados de Montemuro a brava e rota. Velhaca e traiçoeira era a que vinha das bandas de suão, tanto assim que lhe chamavam a ladroa. Neve de má raça! Essa não precisava que lhe abrissem as portas, irrompia pelas frinchas e gretas dos telhados sem pedir licença a ninguém. Às duas por três, estava metida na cama com um santo, sem se saber por onde viera. Lá fora, nos braços do cieiro, era uma rascoa de mitra e gaita. Cortava a carne como se trouxesse uma navalha de fadista. Na manhã, o mundo era um lençol de defuntos. O degelo levava às vezes dias. Devagar tomava à sua feição e Teotónio assistia aquilo como ao regresso interessado e impaciente dum cativo.

   Às vezes fazia luar e Teotónio especava-se no traço da cabana a vê-la cair, zebrando o céu com a sua farfalha, aquela farinha mal moída que caía sem relego, uma após outra, uma após outra, como se a Lua fosse a moega. Outras vezes, engoiado no casulo de palha, dava fé pelo alicate que lhe aperrava a orelha ou pelo abambar das giestas no tecto da cardenha sob o peso desconforme."

 

Aquilino Ribeiro, Quando os lobos uivam

 

...

Já divulguei por aqui vários poemas deste nosso autor, com o objectivo de dar a conhecer outras facetas da sua poesia, porque praticamente só é conhecido pela Balada da Neve e pouco mais. Hoje volto à sua obra, por causa do Outono que se anuncia cada vez mais real e porque me lembrei dum seu poema, dos mais conhecidos, eivado de simpatia para com os sofredores, dentro da linha da piedade cristã mais franciscana e mais terna. O poema vale também pela harmonia e pela musicalidade das palavras.

 

ORAÇÃO
Outono. Morre o dia.
Cai sobre as coisas plácidas e calmas
Um véu de sombra e melancolia
Que dulcifica e embrandece as almas.
Todo o meu ser se invade
De enervantes e místicas doçuras,
De mansidão, de paz, de suavidade,
De sentimentos bons, de ideias puras.
No coração perpassa
Uma piedade e compaixão serena
Por todos os validos da desgraça,
Por tudo quanto sofre e quanto pena:
Pelos pequenos entes
Sem abrigo, sem lar e sem carinho,
Que são como avezinhas inocentes
Postas por mão cruel fora do ninho;
Pelos encarcerados
Que lançam, dentre as grades da cadeia,
Ao ar, à luz, aos montes afastados
A vista aflita e de amarguras cheia;
Pelos que vão pedindo
De porta em porta o pão de cada dia,
Tristes, que sempre a morte olham sorrindo
Porque ela unicamente os alivia;
Pelos que andam distantes
Entre cruezas, fomes e perigos,
Sentindo a nostalgia lancinante
Da pátria, da família, dos amigos;
E numa emoção crente,
Numa fé viva, forte e benfazeja,
A Deus suplico fervorosamente
Que os guie, que os socorra, que os proteja.
 
Musa Cérula

 

...

 

 

O Outono chega lento e atento às cores dum céu pálido, onde o azul desmaia em policromias de tons incríveis e belos. Pintor exímio, do verde faz milagres de transfigurações e tudo relaxa na natureza. Fica, no entanto, a dor da perda do azul saudável do Verão.

 

 

 

Domingos de Outono

  

      O Outono anuncia-se paulatinamente. São as manhãs frias cheias de gotículas faiscantes enamoradas dos raios de sol que as vem beijar às primeiras horas da manhã. São as sombras frescas contrastantes com as  tórridas e doentias soalheiras. São as tardes efervescentes de bandos traiçoeiros de mosquitos ávidos das últimas frutas demoradas nas árvores apodrecidas. São as noites a cheirar a lume atractivas pelo conchego das casas e pela brisa fria do norte impiedoso. Tudo começa a cheirar a Outono - apesar do sol teimosamente continuar intenso e doentio - até as tardes de Domingo com esse silêncio nostálgico que nos torna moles e desejosos do sofá  televiso e alienante. A não ser que façamos como o heterónimo de Pessoa:

 

    Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,

    Contente da minha anonimidade.   
    Domingo serei feliz — eles, eles...  
    Domingo... 
    Hoje é quinta-feira da semana que não tem domingo... 
    Nenhum domingo. — 
    Nunca domingo. — 
    Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem. 
    Assim passa a vida, 
    Sutil para quem sente, 
    Mais ou menos para quem pensa: 
    Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo,  
    Não no nosso domingo, 
    Não no meu domingo, 
    Não no domingo... 
    Mas sempre haverá outros nas hortas e ao domingo! 

 

 

Álvaro de Campos