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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Manhã Branca na Guarda

 

 

 

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A natureza dá-nos sempre lições, nós é que muitas vezes não as queremos ouvir. A brancura e pureza desta manhã de neve e gelo diz-nos que também nós devíamos ser assim brancos, inocentes, de alma limpa: deste modo nunca deixaríamos estragar as amizades.

Até o velho castanheiro, já decrépito, ficou branco!

Caeiro

 

 

A neve pôs uma toalha calada sobre tudo.
Não se sente senão o que se passa dentro de casa.
Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.
Sinto um gozo de animal e vagamente penso,
E adormeço sem menos utilidade que todas as ações do mundo.


Alberto Caeiro, in "Poemas Inconjuntos"

Neve na Guarda (3)

Nos últimos anos escasseou e raramente se mostrou cá pelo alto da Serra. Este ano em pouco tempo é a terceira visita: começou de manhã e foi-se acumulando aos poucos. Até o cão lhe achou piada e brincou divertido na brancura do caminho.

 

NEVE (2)

 

Caía lenta e breve
levada no vento vindo
do alto cume dos céus
envolta em ténues véus
ensaiando ao de leve
um bailado lindo.
Caía lenta e branca
de imaculada beleza
descendo sorrateira
caiando de qualquer maneira
sem porta nem retranca,
noivando a natureza.
José Monteiro

NEVE

 

 

 

 

   "Quando levantou da cama no lusco-fusco da manhã, com grande espanto seu, deu de cara com uma camada de neve que, embora mansíssima, tão densa viera que estendera sem a mínima quebra o seu lençol pela serra toda. Teotónio não a sentira no seu ninho de feno e o Farrusco parecia tão admirado como ele. De ordinário Teotónio podia de manhã ser surpreendido pela neve, mas não que estivesse inadvertido da sua chegada. Lia-a no cariz do céu, no meneio das aves, nos insectos que suspendiam a zanguizarra, na agitação do cachorro, mais atanazado das pulgas, nas plantas que, muito hirtas e graves, esperam a neve como uma epifania. Já se sabe, não faz barulho nem bate à porta como a chuva, ou como o vento. Mas a ele bastava-lhe o olfacto para a sentir a sete léguas de distância. Observando o horizonte, conhecia se nevava dos lados da Estrela, ou de cantaril, que é a mais dominiosa, ou dos lados de Montemuro a brava e rota. Velhaca e traiçoeira era a que vinha das bandas de suão, tanto assim que lhe chamavam a ladroa. Neve de má raça! Essa não precisava que lhe abrissem as portas, irrompia pelas frinchas e gretas dos telhados sem pedir licença a ninguém. Às duas por três, estava metida na cama com um santo, sem se saber por onde viera. Lá fora, nos braços do cieiro, era uma rascoa de mitra e gaita. Cortava a carne como se trouxesse uma navalha de fadista. Na manhã, o mundo era um lençol de defuntos. O degelo levava às vezes dias. Devagar tomava à sua feição e Teotónio assistia aquilo como ao regresso interessado e impaciente dum cativo.

   Às vezes fazia luar e Teotónio especava-se no traço da cabana a vê-la cair, zebrando o céu com a sua farfalha, aquela farinha mal moída que caía sem relego, uma após outra, uma após outra, como se a Lua fosse a moega. Outras vezes, engoiado no casulo de palha, dava fé pelo alicate que lhe aperrava a orelha ou pelo abambar das giestas no tecto da cardenha sob o peso desconforme."

 

Aquilino Ribeiro, Quando os lobos uivam