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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Manuel António Pina (18.11.1943 - 19.10.2012)

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A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

Lugares da Infância

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Lugares da infância onde
sem palavras e sem memória
alguém, talvez eu, brincou
já lá não estão nem lá estou.

Onde? Diante
de que mistério
em que, como num espelho hesitante,
o meu rosto, outro rosto, se reflecte?

Venderam a casa, as flores
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas
e geladas, e sob os meus passos
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações.

O quarto eu não o via
porque era ele os meus olhos;
e eu não o sabia
e essa era a sabedoria.

Agora sei estas coisas
de um modo que não me pertence,
como se as tivesse roubado.

A casa já não cresce
à volta da sala,
puseram a mesa para quatro
e o coração só para três.

Falta alguém, não sei quem,
foi cortar o cabelo e só voltou
oito dias depois,
já o jantar tinha arrefecido.

E fico de novo sozinho,
na cama vazia, no quarto vazio.
Lá fora é de noite, ladram os cães;
e eu cubro a cabeça com os lençóis.

Manuel Pina, Um Sítio onde Pousar a Cabeça

M. A. Pina

A um Jovem Poeta
 
Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da Razão
e passagem para o que não se vê.

Manuel António Pina, in "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança"

...

(Sabugal, 1943 - Porto, 2012)

Manuel António Pina era reconhecido como um dos melhores cronistas de língua portuguesa

 

A morte e a vida morrem 
e sob a sua eternidade fica 
só a memória do esquecimento de tudo; 
também o silêncio de aquele que fala se calará. 

Quem fala de estas 
coisas e de falar de elas 
foge para o puro esquecimento 
fora da cabeça e de si. 

O que existe falta 
sob a eternidade; 
saber é esquecer, e 
esta é a sabedoria e o esquecimento. 

"Aquele que Quer Morrer"

NA BIBLIOTECA

 

O que não pode ser dito
guarda um silêncio
feito de primeiras palavras
diante do poema, que chega sempre demasiadamente tarde,

 

quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros alexandrinos.
Na biblioteca, em cada livro,

 

em cada página sobre si
recolhida, às horas mortas em que
a casa se recolheu também
virada para o lado de dentro,

 

as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que dormiram as coisas
antes da chegada dos deuses.

 

Aí, onde não alcançam nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
‘E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.’

 

Manuel António Pina, Poesia, Saudade da Prosa - uma antologia pessoal, Assírio & Alvim, 2011

 

Café do Molhe


Perguntavas-me 
(ou talvez não tenhas sido 
tu, mas só a ti 
naquele tempo eu ouvia) 

porquê a poesia, 
e não outra coisa qualquer: 
a filosofia, o futebol, alguma mulher? 
Eu não sabia 

que a resposta estava 
numa certa estrofe de 
um certo poema de 
Frei Luis de Léon que Poe 

(acho que era Poe) 
conhecia de cor, 
em castelhano e tudo. 
Porém se o soubesse 

de pouco me teria 
então servido, ou de nada. 
Porque estavas inclinada 
de um modo tão perfeito 

sobre a mesa 
e o meu coração batia 
tão infundadamente no teu peito 
sob a tua blusa acesa 

que tudo o que soubesse não o saberia. 
Hoje sei:escrevo 
contra aquilo de que me lembro, 
essa tarde parada, por exemplo. 

 

Manuel António Pina, "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança" (1999) 

Agora É

 

 

Agora é diferente
Tenho o teu nome o teu cheiro
A minha roupa de repente
ficou com o teu cheiro

Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos
lugar para o amor

Já não arranjamos vagar
para o amor agora
isto vai devagar
isto agora demora



Manuel António Pina
Poesia Reunida

Prémio Camões - Manuel A. Pina

O nosso Manuel António Pina é o Prémio Camões deste ano, com unanimidade do júri. Poeta, jornalista e autor de saborosas crónicas, natural do Sabugal, está ligado afectivamente à Guarda que há uns anos lhe prestou homenagem.

 

Completas


A meu favor tenho o teu olhar 
testemunhando por mim 
perante juízes terríveis: 
a morte, os amigos, os inimigos. 

E aqueles que me assaltam 
à noite na solidão do quarto 
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim 
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto. 

Protege-me com ele, com o teu olhar, 
dos demónios da noite e das aflições do dia, 
fala em voz alta, não deixes que adormeça, 
afasta de mim o pecado da infelicidade. 

Manuel António Pina, in “Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância”