Havia um vaso de perfume em barro branco e a mulher que se colocou de gatas radiante por poder exibir a farta cabeleira Mas ao quebrá-lo daquele modo aos pés do hóspede misturou o nardo imprevistamente com o cheiro de uma mulher que chora
O anfitrião especado observava, sem pronunciar um som o mestre, porém, olhou-a com os seus olhos de cão meigo a vagabundagem e a pobreza eram direitos de quem entrou e saiu das trevas para fazer da infelicidade um uso
Recordarei sempre aquele momento perfeito fio de prumo que indica o centro da vida.
O poema segue as premissas da guerrilha urbana. Jamais revela identidades e endereços. Estabelece que pontos de contacto não sejam escritos, apenas memorizados. Cancela dos seus arquivos nomes legais ou ilegais e toda a espécie de informação biográfica, mapas e planos. Não permite a ninguém conhecer a globalidade dos elementos em campo.
A nossa maior crueldade é o tempo. Como um fabricante de armadilhas desajeitado que acaba sempre prisioneiro das engrenagens que produz, também nós inventamos o tempo e nunca temos tempo. Os nossos relógios nunca dormem. Quantas vezes o tempo é a nossa desculpa para desinvestir da vida, para perpetuar o desencontro que mantemos com ela? Como não temos diante de nós os séculos, renunciamos à audácia de viver plenamente o breve instante. A imagem de crono, devorando aquilo que gera, obsidia-nos. O tempo consome-nos sem nos encaminhar verdadeiramente para a consumação da promessa. Nesse sentido, o consumo desenfreado não é outra coisa que uma bolsa de compensações. As coisas que se adquirem são naquele momento, obviamente, mais do que coisas: são promessas que nos acenam, são protestos impotentes por uma existência que não nos satisfaz, são ficções do nosso teatro interno, são uma corrida contra o tempo. A verdade é que precisamos reconciliar-nos com o tempo. Não nos basta um conceito de tempo linear, ininterrupto, mecanizado, puramente histórico. O continuum homogéneo do tempo que a teoria do progresso desenha não conhece a rutura trazida pela novidade surpreendente. E a redenção é essa novidade. Precisamos identificar uma dupla significação no instante presente. O presente pode ser uma passagem horizontal, quantitativa, na perspetiva de uma realização entre este instante e o que lhe sucede. Mas o presente tem também um sentido vertical que requalifica o tempo, abrindo-o à eternidade. É o tempo qualitativo, epifânico.
José Tolentino Mendonça, in 'A Mística do Instante'
A mão preferida pelo silêncio evoca sobre o muro um alfabeto sem vincos não é mão é uma luz que sobe pela colina um atalho entre as estevas um incêndio na mata a rapariga louca,grita contra a noite na enseada A mão preferida pelo silêncio folheia o livro dos incêndios torna-se irremediavelmente suja sobre o muro traça os vincos os primeiros versos A mão preferida pelo silêncio não conhece repouso quando atravessa a noite da enseada é a mão trémula pobre assinalada pela escassez extrema dos nomes