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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ícaro

Jose_Regio.jpg

 (1901-1969)

 

A minha Dor, vesti-a de brocado, 
Fi-la cantar um choro em melopeia, 
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado, 
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a. 

Por longo tempo, assim fiquei prostrado, 
Moendo os joelhos sobre lodo e areia. 
E as multidões desceram do povoado, 
Que a minha dor cantava de sereia... 

Depois, ruflaram alto asas de agoiro! 
Um silêncio gelou em derredor... 
E eu levantei a face, a tremer todo: 

Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro! 
E, misérrima e nua, a minha Dor 
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo. 

José Régio, Poemas de Deus e do Diabo

LIBERTAÇÃO

Menino doido, olhei em volta, e vi-me
Fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
Era impossível para a minha altura...)

Como passar o tempo?... E diverti-me
Desta maneira trágica e segura:
Pegando em mim, rasguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura...

Ah, meu menino histérico e precoce!
Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da Descoberta!

O menino, por fim, tombou cansado;
O seu boneco aí jaz esfarelado...
E eu acho, nem sei como, a porta aberta!

José Régio

NATAL (José Régio)

[retirado de: www.oracaovirtual.com.pt/.../presepio.jpg]

 

Com este poema termino a homenagem que nestes dias fiz ao grande escritor José Régio e aproveito para desejar a todos os amigos e frequentadores deste "sítio" um

Santo Natal

cheio de paz e harmonia.

 

  

 
 
Nascença Eterna,
Nasce mais uma vez!
Refaz a humílima Caverna
Que nunca se desfez.
 
Distância Transcendente,
Chega-te, uma vez mais,
Tão perto que te aqueças, como a gente,
No bafo dos obscuros animais.
 
Os que te dizem não,
Os épicos do absurdo,
Que afirmarão, na sua negação,
Senão seu olho cego, ouvido surdo?
 
Infelizes supremos,
Com seu fracasso alcançam nomeada,
E contentes se atiram aos extremos
Do seu nada.
 
Da nossa ambiguidade,
Somos piores, nós, talvez,
E uns e outros só vemos a verdade,
Que, Verdade de Sempre, tu nos dês.
 
Se nada tem sentido sem a fé
No seu sentido, Sol que não te apagas,
Rompe mais uma vez na noite, que não é
Senão o dia de outras plagas.
 
Perpétua Luz, Contínua Oferta
À nossa escuridade interna,
Abre-te, Porta sempre aberta,
Mais uma vez, na humílima Caverna.
 
Dezembro de 1964
 
Diário de Notícias

JOSÉ RÉGIO - 40 ANOS DA SUA MORTE

 

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, é um escritor português, natural de Vila do Conde, que morreu faz hoje precisamente 40 anos. Foi um dos fundadores da revista Presença e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, como poeta é que, todavia, primeiramente se impôs e mais larga audiência depois atingiu: não há hoje, talvez, poeta contemporâneo que usufrua de tanto prestígio junto do grande público, muito embora esse prestígio se deva, nalguns casos, a características menos positivas da sua poesia, — tais como um tom declamatório, uma imaginística demasiado acessível e uma excessiva preocupação de tudo miudamente explicar, que se confunde, não raro, com a sua real vocação de analista e de psicólogo.

Com o livro de estreia — Poemas de Deus e do Diabo (1925) — apresentou J. R. quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade; a consciência da frustração de todo o amor humano; o orgulhoso recurso à solidão; a problemática da sinceridade perante os outros e perante si mesmo.

 

David Mourão-Ferreira, Dicionário da Literatura

Conto - José Régio

 

Vai o menino só na estrada grande,

 

Grande e medonha entre pinhais sombrios,

 

Entre uivos ruivos, roucos e bravios

 

Arranhando o silêncio que se expande...

 

 
A mãe dissera-lhe: - "Ó menino, ande

 

Longe das selvas, dos fundões, dos rios..."

 

E avós, irmãos, amigos, primos, tios:

 

- "Menino, vá por onde a gente o mande!"

 

 
Mas o menino foi desobediente.

 

E andou por vias ínvias ou sem gente,

 

Pela mão de enigmáticos destinos.

 

 
Saltar-lhe-ão lobos vis e cães de el-rei...

 

- Foi pondo o ouvido em terra, que escutei

 

Lobos uivar e soluçar meninos.

 

 
Biografia

Ignoto Deo - José Régio

 

 

Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim!

in 'Biografia'

Colegial - José Régio


Em cima da minha mesa,
Da minha mesa de estudo,
Mesa da minha tristeza
Em que, de noite e de dia,
Rasgo as folhas, leio tudo
Destes livros em que estudo,
E me estudo
(Eu já me estudo…)
E me estudo,
A mim,
Também,
Em cima da minha mesa,
Tenho o teu retrato, Mãe!

À cabeceira do leito,
Dentro dum lindo caixilho,
Tenho uma Nossa Senhora
Que venero a toda a hora…
Ai minha Nossa Senhora
Que se parece contigo,
E que tem, ao peito,
Um filho
(O que ainda é mais estranho)
Que se parece comigo,
Num retratinho,
Que tenho,
De menino pequenino…!

No fundo da minha mala,
Mesmo lá no fundo, a um canto,
Não lhes vá tocar alguém,
(quem as lesse, o que entendia?
Só riria
Do que nos comove a nós…)
Já tenho três maços, Mãe,
Das cartas que tu me escreves
Desde que saí de casa…
Três maços – e nada leves! –
Atados com um retrós…

Se não fora eu ter-te assim,
A toda a hora,
Sempre à beirinha de mim,
(Sei agora
Que isto de a gente ser grande
Não é como se nos pinta…)
Mãe!, já teria morrido,
Ou já teria fugido,
Ou já teria bebido
Algum tinteiro de tinta!


Onomatopeia - José Régio

 

Menino franzino,
Quase pequenino,
Pequenino, triste,
Neste mundo só...,

Menino, desiste
De que tenham dó!

Desiste, menino,
Que o mundo é cretino...
Deixa o teu violino,
Toca o sol-e-dó.

Cada teu suspiro
Cai ao chão no pó...
Canta o tiro-liro
Tiro-liro-ló.

Deixa o teu violino,
Que não te é destino.
Desiste, menino,
De que tenham dó!

Menino franzino,
Triste e pequenino,
Pequenino, triste,
Neste mundo só...,

Menino, desiste!
Toca o sol-e-dó.
Canta o tiro-liro, repipiro-piro,
Canta o repipiro, tiro-liro-ló.

ÍCARO - José Régio

 

 

A minha Dor, vesti-a de brocado,
Fi-la cantar um choro em melopeia,
Ergui-lhe um trono de oiro imaculado,
Ajoelhei de mãos postas e adorei-a.

Por longo tempo, assim fiquei prostrado,
Moendo os joelhos sobre lodo e areia.
E as multidões desceram do povoado,
Que a minha dor cantava de sereia...

Depois, ruflaram alto asas de agoiro!
Um silêncio gelou em derredor...
E eu levantei a face, a tremer todo:

Jesus! ruíra em cinza o trono de oiro!
E, misérrima e nua, a minha Dor
Ajoelhara a meu lado sobre o lodo.

Poemas de Deus e do Diabo

 [Na minha opinião, um dos mais belos sonetos da Língua Portuguesa.]

NATAL - José Régio

 

Mais uma vez, cá vimos

Festejar o teu novo nascimento,

Nós, que, parece, nos desiludimos

Do teu advento!

 

Cada vez o teu Reino é menos deste mundo!

Mas vimos, com as mãos cheias dos nossos pomos,

Festejar-te, ─ do fundo

Da miséria que somos.

 

Os que à chegada

Te vimos esperar com palmas, frutos, hinos,

Somos ─ não uma vez, mas cada ─

Teus assassinos.

 

À tua mesa nos sentamos:

Teu sangue e corpo é que nos mata a sede e a fome;

Mas por trinta moedas te entregamos;

E por temor, negamos o teu nome.

 

Sob escárnios e ultrajes,

Ao vulgo te exibimos, que te aclame;

Te rojamos nas lajes;

Te cravejamos numa cruz infame.

 

Depois, a mesma cruz, a erguemos,

Como um farol de salvação,

Sobre as cidades em que ferve extremos

A nossa corrupção.

 

Os que em leilão a arrematamos

Como sagrada peça única,

Somos os que jogamos,

Para comércio, a tua túnica.

 

Tais somos, os que, por costume,

Vimos, mais uma vez,

Aquecer-nos ao lume

Que do teu frio e solidão nos dês.

 

Como é que ainda tens a infinita paciência

De voltar, ─ e te esqueces

De que a nossa indigência

Recusa Tudo que lhe ofereces?

 

Mas, se um ano tu deixas de nascer,

Se de vez se nos cala a tua voz,

Se enfim por nós desistes de morrer,

Jesus recém-nascido!, o que será de nós?!

 

 

 

Diário de Notícias, edição nº 33 345, de 25 de Dezembro de 1958