As lâminas do tempo
rasgam a saudade líquida
do passado
afiadas entram na pele da memória
e revivem-nos os rostos
daqueles que amamos e partiram
ficam os farrapos das lágrimas
à flor da memória-saudade
assomando às janelas da alma
mas o presente é nosso
e nessas lâminas agudas
construímos o futuro do coração.
J M – 10.01.2017
Viam-se nas gotículas matinais do nevoeiro,
finas farpas que feriam a pele,
como o duro frio matinal;
também o vento, sorrateiro,
sacudia algumas folhas cor de mel
que tombavam no chão, afinal;
mesmo os teus olhos afanosos
que faiscavam nos outros dias
hoje estavam bastante incertos.
vieste com tuas bizarras fantasias:
cuidado, coração: olhos abertos!
Um dia é preciso parar,
a vida exige uma pausa.
O silêncio sabe-nos bem. Olhar
para trás e saber a causa,
inventariar o tempo. Esperar.
Esperar o quê? Tanta coisa:
às vezes o que merecemos
outras vezes o que não queremos;
às vezes o que desejamos
outras vezes o que evitamos;
às vezes a alegria
outras a acre azia; …
E quem melhor que a noite,
secretária de meus cansaços,
que nos silêncio nos acoite
no aconchego dos seus braços?
Há dias em que temos de parar!
J M
espreitavam a praça deserta
as sombras esperavam uma aberta
esperava o momento de atacar
olha em ânsias a Rua Direita
J M 05.04.2017
[Foto de Carlos Adaixo]
Senhor, sinto-me hoje perdido:
já não há paz, não há sossego,
vivo na inquietude, desiludido
com o homem que só impõe o medo.
Do oriente ao ocidente tudo muda,
a fragilidade é nossa companheira,
a rapacidade é comum e pontiaguda,
a vida é efémera e passageira.
Que esperança, então, pode sobreviver
neste universo corrupto em decadência?
O dinheiro, as finanças e o poder
vão destruindo os limites da decência.
Resta a esperança de que a chama vinda
das cinzas leves da Fénix imolada
renasça a ordem e mantenha ainda
a hipótese da ressurreição desejada.
J M 03.2017
(Foto de Carlos Adaixo)
Um pilar apagado
sustenta o céu cinzento
entrecortado
por olhos de vento
espreitando
desperto entre nuvens
entrelaçando
os dedos divinos
sistinos
(de Miguel Ângelo).
Sentado no banco sombrio
Deus prepara a recriação
de outro Adão
mais humilde e sóbrio.
J M 10.03.2017
Deixei-me levar p’la aventura do medo,
vivi experiências desertas de fugas,
fechei as portas à vida e à morte,
tranquei-me por dentro do desespero.
Vigiei pedaços de aventura louca,
corri paixões à espera de lucro,
no fim de tudo não ficou nada
porque a ânsia era desmedida.
Gastei pedaços à espera do tempo
mas este fugiu para fora de mim
e na tarde infinita do sábado imenso
encontrei-me só num mundo-penedo.
Louvei aos montes a sua grandeza
cantei à vida a grande desgraça,
perdi-me tonto na hora da natureza:
fiquei parado na aventura do medo.
J M
O pintor morreu
envolto em rosas de maio,
olhando os meninos do Bairro Negro,
cantando os cravos rubros
de um abril florido.
Em Grândola poeta-libertador,
dum povo adormecido,
na longa noite de 33;
em abril soldado em flor
que desabrochou a 24,
numa manhã ingente e fresca
florida em liberdade.
Na noite, cantor-maldito
de vampiros e eunucos
cuja voz rompeu os tímpanos
de absurdos assombros:
Peniche, Caxias, Tarrafal.
Em Coimbra, amigo do vento
levado do Choupal à Lapa
nas brisas ternas dos sonhos
até aos filhos da madrugada.
Em Portugal poeta-músico
cujo machado não corta
a enraizada lembrança
gravada a palavras-fogo
no peito da nossa memória.
E se alguém se enganou
com seu olhar modesto
verá correr as águas claras
dos mananciais da música
que guardam perenemente
a timbrada voz universal
de abril-liberdade!
J M (23.02.1987)
Caminho na luz débil do entardecer
ao longo da praia do teu corpo;
no horizonte ouvem-se a descer
as pregas do teu silêncio. Porto
de abrigo, o teu aroma perfumado
rescende à seiva da terra ávida
no pousio de um inverno gelado
preparando o renascer de calma vida.
Rebentos, as tuas mãos remetem
às colheitas fartas lá para setembro;
agora, vejo teu perfil estampado
no início de nova criação e lembro
as primaveras havidas no passado.
As curvas dos beijos tanto prometem!
J M - 19.02.2017
Essa criança esquelética e nua
que encontramos às vezes por aí,
chama-nos egoístas a mim e a ti
quando nos cruzamos com ela na rua!
O rosto ansioso,
a avidez do olhar,
as rugas da face,
a tristeza da pele,
atiram-nos pedidos
em apelos mudos
no sulco profundo
da sua voz sumida.
Suas mãos ósseas
rasgadas nos caixotes
e que no lixo sobrevivem,
levantam-se caladas
numa prece angustiante,
num apelo premente
que os humanos não ouvirão!
Criança! Agora apenas criança!
Mais tarde quiçá marginal,
mero mas impressivo sinal:
o mundo é sem-esperança!
J M