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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

As lâminas do tempo

sincelo.jpg

 

As lâminas do tempo
rasgam a saudade líquida
do passado

 

afiadas entram na pele da memória
e revivem-nos os rostos
daqueles que amamos e partiram

 

ficam os farrapos das lágrimas
à flor da memória-saudade
assomando às janelas da alma

 

mas o presente é nosso
e nessas lâminas agudas
construímos o futuro do coração.

 


J M – 10.01.2017

Outono

outono.jpg

 

 
Viam-se nas gotículas matinais do nevoeiro,
finas farpas que feriam a pele,
como o duro frio matinal;
 
também o vento, sorrateiro,
sacudia algumas folhas cor de mel
que tombavam no chão, afinal;
 
mesmo os teus olhos afanosos
que faiscavam nos outros dias
hoje estavam bastante incertos.
 
Ah! outono dos saudosos!
vieste com tuas bizarras fantasias:
cuidado, coração: olhos abertos!
 
J M
22.09.2016

Pausa

pausa.jpeg

 

 

Um dia é preciso parar,

a vida exige uma pausa.

 

O silêncio sabe-nos bem. Olhar

para trás e saber a causa,

inventariar o tempo. Esperar.

 

Esperar o quê? Tanta coisa:

às vezes o que merecemos

outras vezes o que não queremos;

às vezes o que desejamos

outras vezes o que evitamos;

às vezes a alegria

outras a acre azia; …

 

 E quem melhor que a noite,

secretária de meus cansaços,

que nos silêncio nos acoite

no aconchego dos seus braços?

 

Há dias em que temos de parar!

 

J M

 

Os olhos das casas

praça velha - Adaixo.jpg

Os olhos das casas
espreitavam a praça deserta
e no lajedo do chão
as sombras esperavam uma aberta
para se apoderarem dela
 
mas ao fundo na janela
resvés com as pedras
uma labareda vigiando
esperava o momento de atacar
o resto de luz
 
e atento D. Sancho
a mão nervosa na espada
olha em ânsias a Rua Direita
tentando vislumbrar
a esbelta Ribeirinha

 

 

J M 05.04.2017

 

[Foto de Carlos Adaixo]

Prece

Senhor, sinto-me hoje perdido:

já não há paz, não há sossego,

vivo na inquietude, desiludido

com o homem que só impõe o medo.

 

Do oriente ao ocidente tudo muda,

a fragilidade é nossa companheira,

a rapacidade é comum e pontiaguda,

 a vida é efémera e passageira.

 

Que esperança, então, pode sobreviver

neste universo corrupto em decadência?

O dinheiro, as finanças e o poder

vão destruindo os limites da decência.

 

Resta a esperança de que a chama vinda

das cinzas leves da Fénix imolada

renasça a ordem e mantenha ainda

a hipótese da ressurreição desejada.

 

J M 03.2017

Pilar

candeeiro CA.jpg

(Foto de Carlos Adaixo)

 

Um pilar apagado

sustenta o céu cinzento

entrecortado

por olhos de vento

espreitando

desperto entre nuvens

entrelaçando

os dedos divinos

sistinos

(de Miguel Ângelo).

 

Sentado no banco sombrio

Deus prepara a recriação

de outro Adão

mais humilde e sóbrio.

 

J M 10.03.2017

Medo

Deixei-me levar p’la aventura do medo,

vivi experiências desertas de fugas,

fechei as portas à vida e à morte,

tranquei-me por dentro do desespero.

 

Vigiei pedaços de aventura louca,

corri paixões à espera de lucro,

no fim de tudo não ficou nada

porque a ânsia era desmedida.

 

Gastei pedaços à espera do tempo

mas este fugiu para fora de mim

e na tarde infinita do sábado imenso

encontrei-me só num mundo-penedo.

 

Louvei aos montes a sua grandeza

cantei à vida a grande desgraça,

perdi-me tonto na hora da natureza:

fiquei parado na aventura do medo.

 

J M

30 anos! (2)

O pintor morreu

envolto em rosas de maio,

olhando os meninos do Bairro Negro,

cantando os cravos rubros

de um abril florido.

 

Em Grândola poeta-libertador,

dum povo adormecido,

na longa noite de 33;

em abril soldado em flor

que desabrochou a 24,

numa manhã ingente e fresca

florida em liberdade.

 

Na noite, cantor-maldito

de vampiros e eunucos

cuja voz rompeu os tímpanos

de absurdos assombros:

Peniche, Caxias, Tarrafal.

 

Em Coimbra, amigo do vento

levado do Choupal à Lapa

nas brisas ternas dos sonhos

até aos filhos da madrugada.

 

Em Portugal poeta-músico

cujo machado não corta

a enraizada lembrança

gravada a palavras-fogo

no peito da nossa memória.

 

E se alguém se enganou

com seu olhar modesto

verá correr as águas claras

dos mananciais da música

que guardam perenemente

a timbrada voz universal

de abril-liberdade!

 

J M (23.02.1987)

Promessas

Caminho na luz débil do entardecer

ao longo da praia do teu corpo;

no horizonte ouvem-se a descer

as pregas do teu silêncio. Porto

 

de abrigo, o teu aroma perfumado

rescende à seiva da terra ávida

no pousio de um inverno gelado

preparando o renascer de calma vida.

 

Rebentos, as tuas mãos remetem

às colheitas fartas lá para setembro;

agora, vejo teu perfil estampado

 

no início de nova criação e lembro

as primaveras havidas no passado.

As curvas dos beijos tanto prometem!

 

J M - 19.02.2017

*Desesperança

Essa criança esquelética e nua

que encontramos às vezes por aí,

chama-nos egoístas a mim e a ti

quando nos cruzamos com ela na rua!

 

O rosto ansioso,

a avidez do olhar,

as rugas da face,

a tristeza da pele,

atiram-nos pedidos

em apelos mudos

no sulco profundo

da sua voz sumida.

Suas mãos ósseas

rasgadas nos caixotes

e que no lixo sobrevivem,

levantam-se caladas

numa prece angustiante,

num apelo premente

que os humanos não ouvirão!

 

Criança! Agora apenas criança!

Mais tarde quiçá marginal,

mero mas impressivo sinal:

o mundo é sem-esperança!

 

J M