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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Sentir

Vi teu olhar preso na lua que ia subindo

a custo a tarde quente de te ver

fiquei expectante à procura duma estrela

que te adornasse o perfil grego

de deusa apanhada na humana condição

 

acabei por perder-me na noite sorrindo

para dentro do meu próprio ser:

ninguém tem dúvidas que és bela

nem sequer se questiona o teu apego

aos sentimentos bonitos do coração.

 

J M

2020.07.27

Dias incertos

"És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças..."

Miguel Torga, Sísifo.

Estes dias que vivemos arrasaram as mentes e danificaram certamente o raciocínio de algumas pessoas. Muitas mesmo. A célebre frase do início "vai ficar tudo bem", está a revelar-se uma mentira fabulosa, sim de fábula. Foi transformada num mito, pois o que hoje em dia verificamos, é que as pessoas em vez de melhorarem no seu humanismo tornaram-se muito mais radicais. Como é possível retirar livros clássicos consagrados pela fruição de milhões de leitores de listas com o argumento falacioso de que são racistas? Então vamos renegar "Os Lusíadas" porque são uma epopeia colonizadora? Ou banir a "Peregrinação" porque ofende os malaios, os indonésios e outros povos maltratados pelos portugueses no Oriente? Sejamos sensatos. Aqueles que se dizem antirracistas e derrubam estátuas por causa de representarem colonizadores ou esclavagistas não estão a cometer um crime de lesa-história? Essa estátuas lembram precisamente o mal que foi feito e podem levar-nos a evitar que volte a suceder. Os livros que representam a história literária de um povo são ficção e por isso são património da humanidade e devem servir-nos de lição para não repetirmos os erros de outras épocas. Não haverá racismo impregnado nas mentes que provocam estes actos? Por detrás das manifestações antirracismo quantas mentes racistas imperam? E os governantes não estarão a tolerar aquilo que pode vir a ser pernicioso para a sociedade? Se somos humanistas não devemos olhar a cor da pele, nem a cor dos olhos, nem a religião professada. Devemos pensar que do outro lado está um ser humano e é por isso que deve ser respeitado nas suas liberdades e nos seus direitos. Quando nos esquecemos disso - e parece que hoje nos esquecemos facilmente disso - nascem os fanatismos, as opressões, a limitação do pensamento. Se as pessoas lessem mais e pensassem por si em vez de se deixarem "lavar mentalmente" pelos programas televisivos de entretenimento reles que só veiculam não-valores e pensassem que as televisões e as redes sociais exploram e transmitem apenas aquilo que interessa ao(s) poder(es) instituído(s), o nosso mundo seria bem melhor. Daí os versos em epígrafe do poeta: "És homem, não te esqueças!"

Regresso (20.05.2020)

Hoje regressei à Escola passados dois meses e uns dias. E neste regresso senti um misto de alegria e tristeza.

Alegria, porque revi, cara a cara, os meus alunos. A alegria do reencontro numa situação de pandemia não pode, contudo, ser plena. O estar na sala de aula, o ouvir e fazer ouvir. O partilhar conhecimentos, o prazer de aprender ainda com eles ou eles comigo.

Mas nada é igual. É uma alegria estranha que se entranha em nós. Não há, à nossa frente, o sorriso juvenil, descarado e apaixonado. Há uma série de rostos tapados por uma máscara que, minuto a minuto, nos relembra que vivemos tempos perigosos. Não há a alegria expansiva dos adolescentes. Há rostos (melhor, pedaços de rostos) que transmitem medo e inibem a partilha total.

Por isso, a tristeza. Esta não é a Escola que criámos durante anos; não é o ensino que nos deu tantas alegrias. Tudo vai ficar bem? Não, não podemos voltar a ficar bem. Haverá sempre algo que nos inibe. Onde o abraço espontâneo para exprimir a alegria do reencontro? Onde a possibilidade do beijo de parabéns à aluna que celebra o aniversário? Não, esta Escola não é aquela em que vivi 38 anos, que me deu tantas alegrias.

No entanto, em termos de organização, está tudo no bom caminho. Se houver casos, não será culpa da Direção que pôs a funcionar uma máquina bem oleada em que tudo encaixa. Nos percursos, na limpeza das salas, na segurança que acabamos por sentir ao regressarmos.

Hoje, porém, foi um dia estranho. Que prevaleça a alegria da esperança em dias melhores.

José Manuel Monteiro

20 de maio de 2020

Está alguém em casa?

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     E ali estavam. Sentados à lareira, olhando o vazio ou um programa estúpido que passava na televisão e que não se adequava à solenidade da noite! Esperavam, talvez um milagre, que outra coisa já não havia que esperar. A desesperança instalara-se.

Antigamente não era assim. A casa estava cheia. Primeiro com os filhos. Depois veio o reboliço dos netos: ninguém parava sossegado. A mesa era posta na sala grande e sempre cheia de acepipes. E, à sua volta, a correria do costume. Os homens refastelados nas cadeiras iam petiscando e bebericando qualquer coisita e as mulheres atarefadas com os últimos preparativos preparavam cuidadosamente o bacalhau e as couves, o polvo, quando o dinheiro já dava para uns extras, no arroz da tradição, trazida das grandes cidades e as sobremesas onde pontificava o excelente arroz doce feito pelo carinho extremoso da dona de casa. Aproveitava-se o tempo de pausas para pôr a conversa em dia especialmente sobre aqueles que tinham vindo de mais longe e para trocar impressões sobre o futuro que aparecia no limiar da porta.

     Aos poucos, no entanto, os netos foram crescendo e ganhando a sua autonomia. Apareciam raras vezes, de fugida, e corriam novamente para os seus lugares, que a aldeia não tinha futuro para eles. E assim, paulatinamente, a solidão foi tomando conta das suas vidas. Nem nesta noite de Natal já voltavam para confraternizar com os velhotes. Parecia que o mundo se tinha esquecido deles e até os filhos, entregues às suas vidas absorventes, primavam pela ausência. Que sociedade esta! E lá estava a televisão a noticiar que abriu uma creche para animais ali bem perto, na grande cidade. E um deputado qualquer, dum partido dispensável, como mais dois ou três, defendia convictamente a existência de cuidados paliativos para animais. Santo Deus-Menino!

     - Já viste, Tó Maria, como está tudo ao contrário? Os animais têm quem cuide deles e quem os acompanhe e nós para aqui sozinhos!

    - Tens razão, Mizé, já nada é como dantes! Vê como os nossos filhos nos deixaram aqui sozinhos! Será que ao menos o Tó Mané, que está separado, não nos podia ter feito companhia?

     - Deixa-o lá, homem! Ele ainda não superou o que lhe fez aquela doida! E, se tivesse vindo, também não seria boa companhia. Era capaz de exagerar na bebida e ainda ficávamos mais preocupados.

     - Tens razão, mulher! Lá ficou com aquele amigo leal e com os filhos. Oxalá tudo lhe corra bem!

       Como era possível, pensaram eles, embora não o dissessem, dar-se tanto valor aos animais e desprezar tantíssimo os seres humanos! Não é que não gostassem dos animais: não dispensavam a companhia do seu Farrusco, cão de guarda mais fiel que a guarda pretoriana, e do seu Ronrom, aninhado ali no colo, tornando a solidão menos cruel. Mas se fosse preciso optar entre os animais da casa e os filhos, logicamente estes estariam em primeiro lugar. E lá vinha à memória o verso do poeta ouvido algures: “que mundo, coitadinha!”

     E a televisão, depois duns cabeceamentos de sono invasivo, voltava ao ataque com uma reportagem sobre os sem-abrigo mostrando o Presidente a comer a ceia de Natal, no meio de uma série de seres com marcas de uma vida amargurada, todo sorridente e afável para os repórteres de imagem. E devia ser mesmo só para a imagem! E nos outros 364 dias do ano onde estava o Presidente e a sua solidariedade? Onde estão as decisões do Governo para melhorar a vida daqueles que tiveram a infelicidade de ficar sem nada? Se não fosse o voluntariado de meia dúzia de cidadãos conscientes, nem nesta noite teriam apoio. Mas afinal não era o que se passava com eles para ali sozinhos, na noite de Consoada? E aquela pergunta reabriu a ferida do abandono. Com tantos filhos e netos, nem um sequer tinha aparecido para estar com eles.

     - Olha, Tó, para o ano convidamos o Presidente, pode ser que ele traga o bacalhau branquinho da Noruega. E nos faça companhia.

     - Tens razão, Mizé! Pelo menos, com o jeito que ele tem, contava-nos umas histórias para alegrar a noite. Ao menos isso ele sabe fazer bem!

     Ainda se entretiveram durante alguns minutos a fazer as orações da época, aprendidas com os Pais e que tinham ficado na memória de uma religião transmitida através de fórmulas papagueadas na catequese. Sempre foram pessoas cumpridoras das obrigações eclesiais. Se ao menos houvesse ali, na igreja da terra, a missa do Galo, ainda fariam o esforço de lá ir, bem agasalhados, pois o frio da meia-noite não era bom conselheiro e uma constipação, numa altura destas, seria inconveniente. Já tinham tomado a vacina há um mesito atrás, mas mais valia prevenir!

     - Ó Tó, não ouviste? Anda alguém lá fora!

     - Deves estar a ouvir coisas. Deve ter sido o vizinho a deitar de comer ao cão. Além disso o Farrusco não ladrou.

     - Ná, o Ti Manel não fazia aquele barulho! De certeza que anda aí alguém a rondar. Pode ser alguém conhecido!

     - Foi impressão tua. Há poucochinho estavas para aí a cabecear, foi sonho.

     De repente, ouviram-se umas pancadas na porta e uma voz conhecida inquiriu:

     - Está alguém em casa?

 

José Manuel Monteiro

 

[Texto publicado no jornal "A Guarda", de 20.12.2018]

Pai

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As tuas mãos morenas

calosas do saibro da serra,

amansadas na solidão

da luta com inculta terra...

 

O teu rosto escurecido

de vigílias e de cargas,

sempre sereno e lúcido,

em horas doces e amargas...

 

O teu suor destilado

em seiva, húmus do corpo teu

é alimento para os filhos

que agradeces ao Céu.

 

E, no fim dos duros dias,

no secreto do teu lar,

mesmo exausto e sonolento

carinho ainda sabes dar.

 

Pela vida, pelo amor,

pelo carinho, pela ternura,

pelo tempo, pelo suor,

pelas letras, pela cultura,

por tudo o que de ti sai

tudo te agradeço, PAI!

 

J M

Aldeia (ou Ensaio para uma elegia maior)

     As casas estão semeadas aos lados das ruas caindo de repente sobre a lama que encharca o caminho. De pedras velhas, gastas pelos anos e pelo feroz vento norte, fazem cara feia a quem chega, mas sorriem a quem veem todos os dias. Ariscas para uns, amáveis para outros, retribuem o bem que receberam ao longo dos séculos, embora sejam também o espelho de quem as habita e da sua peculiar maneira de ser.

     Quem chega do lado da cidade, bate de repente ao fundo da descida com o muro recuperado de uma habitação quase secular, guardiã da aldeia e dos seus medos escorregadios dos invernos rigorosos. Depois a rua desce e bifurca-se. Para baixo fica o chafariz velho que até secava no verão. E tinha um largo onde as brincadeiras de fim de tarde juntavam a garotada para as escondidas ou qualquer outra gaiatada que desanuviasse quer da escola quer dos trabalhos agrícolas pesados para aquelas costas débeis. E havia ainda o pereiro com frutos doces e breves atração das barrigas mais famintas nas manhãs quase frias de uns setembros pouco promissores. Lá para o fundo os lameiros esperavam com o gado impaciente que a brincadeira não se prolongasse muito para poderem recuperar alguma erva para o dia seguinte. E quando a demora era persistente lá vinha o berro estridente a lembrar as obrigações familiares que a pouca idade fazia esquecer.

     A outra rua crescia para as bandas do comboio, apitando ao longe nas tardes em que o vento soprava dos cumes anatómicos do Jarmelo. E lá no fim a quinta. Onde se precisavam braços para os duros trabalhos agrícolas, remunerados com pouco dinheiro e algum alimento que não chegava para matar a fome às barrigas numerosas das famílias da aldeia. Respirava fartura e as vacas e as ovelhas abundavam pelos campos. Depois vinha a descida para os lados do comboio: primeiro suave e a seguir mais acentuada terminando no ribeiro exíguo do fundo do vale.

 

J M, Fevereiro 2018

[Ensaio para uma elegia maior]

Se ...

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Se eu já não estiver amanhã

O mundo continuará a girar,

Os dias seguirão iguais

E talvez alguém se alegre!

 

Mas isso que importa?

A manhã baterá à tua porta;

 Os rios correrão para o mar;

Haverá alegrias ou tristezas

Súplicas, lágrimas e rezas;

As aves levantar-se-ão a cantar;

O tempo beberá das mesmas fontes

E o fogo devorará ainda os montes, …

 

Se eu já não estiver cá amanhã,

Simplesmente não farei falta:

terei cumprido o meu destino!

 

J M 15.11.2017

Meu país ...

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Meu país vestido de negro e vermelho,

Quem te destrói assim indecentemente?

Quem devora tua riqueza natural?

 

Quem arde teu Interior tão velho?

Quem diz que ajuda mas só mente?

Quem lucra com a morte, afinal?

 

Quem queima os nossos corpos?

Quem devora a simples alma?

Quem é o coveiro da esperança?

 

Ficamos amargos, feios e tortos

Foge-nos aos poucos a calma

E roubam-nos a paterna herança!

 

Meu país de luto e dor,

Viraste, acaso, país de rancor?

 

J M - 16.10.2017

Memórias

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Estás connosco cada dia:
no sorriso peculiar
nas flores que tratavas
com carinho 
(e que ainda lá estão)
na expressão atenta
da vida em alegria;

na defesa do teu lar
nas carícias que "espelhavas"
no teu querido "ninho"
no centro do coração
na palavra sempre isenta:
no ser que em ti vivia!

J M

(Difíceis as palavras para recordar a partida!)

08.10.2017

Lugares

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Regresso devagar aos lugares da minha infância

Lentamente para poder saborear

Os aromas, as brincadeiras, a abundância

De carinhos, as paixões e o luar!

 

J M