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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

As Aldeias

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(1878 - 1921)

Eu gosto das aldeias socegadas, 
Com seu aspecto calmo e pastoril, 
Erguidas nas collinas azuladas - 
Mais frescas que as manhãs finas d'Abril. 

Levanta a alma ás cousas visionarias 
A doce paz das suas eminencias, 
E apraz-nos, pelas ruas solitarias, 
Ver crescer as inuteis florescencias. 

Pelas tardes das eiras - como eu gosto 
Sentir a sua vida activa e sã! 
Vel-as na luz dolente do sol posto, 
E nas suaves tintas da manhã! 

As creanças do campo, ao amoroso 
Calor do dia, folgam seminuas; 
E exala-se um sabor mysterioso 
D'a agreste solidão das suas ruas! 

Alegram as paysagens as creanças, 
Mais cheias de murmurios do que um ninho, 
E elevam-nos ás cousas simples, mansas, 
Ao fundo, as brancas velas d'um moinho. 

Pelas noutes d'estio ouvem-se os rallos 
Zunirem suas notas sibilantes, 
E mistura-se o uivar dos cães distantes 
Com o canto metallico dos gallos... 

António Gomes Leal, 'Claridades do Sul' 

...

A Imaculada Conceição por El Greco

Imaculada Conceição - El Greco

 

 

A VIRGEM DA GALILEIA
 
Era uma vez uma virgem
Em Nazaré, branca aldeia,
Que tinha um noivo da origem
Dos velhos reis da Judeia.
 
À porta do seu casal
Crescia a flor do espinheiro,
Como um emblema primeiro
Do diadema real.
 
De rastos seus pés beijavam
As plantas, como às rainhas.
No seu telhado adejavam
As asas das andorinhas.
 
Consolar a alheia mágoa
Ninguém sabia tão bem!
Era mais pura que a água
Da cisterna de Belém.
 
Havia anseios contidos,
Como vozes de quem roga,
Quando ía de olhos descidos,
Ao sábado, à sinagoga.
 
Vinham as pombas, em bando,
Sobre as suas mãos pousar,
Quando fiava, cantando,
Sentada à porta do lar.
 
Dizia a branca açucena,
Para a flor do rosmaninho:
- Que casta virgem morena
Toda vestida de linho!
 
O mar que se ri da sonda
Dizia com tom estranho:
- Quem me dera uma só onda
Do seu cabelo castanho!
 
Toda a tarde o rouxinol
Cantava à flor do espinheiro:
- Que lindo rosto trigueiro!
Que cantos cheios de sol!
 
Os marinheiros as barcas
Paravam, como em delírio.
Era o mais místico lírio
Do bordão dos Patriarcas!
 
Ora, uma vez que fiava,
Cantando ao pé do espinheiro,
À porta do lar pousava
Um singular passageiro.
 
Voavam pombas nos cumes,
O Sol descia a ladeira.
No ar boiavam perfumes
Mìsticos de laranjeira.
 
O rosto do mensageiro,
Plácido e resplandecente,
Brilhava como um guerreiro,
E como o Sol no Oriente.
 
Então, com voz grave, cheia
De uma inefável poesia,
À Virgem de Galileia
Saudou-a: «Ave-Maria!
 
Ave, ó lírio impoluto!
Cheia de graça ante os Céus.
Bento no ventre é teu fruto.
Convosco é o Senhor Deus!»
 
Mas ela, com humildade,
Como a rasteirinha erva:
- «Faça-se a Vossa vontade,
Senhor, eis a Vossa serva!»
 
Então as rolas voaram,
Deu graças o Oceano vário.
- Mas, sobre as hastes, choraram
As violetas do Calvário.
Gomes Leal, História de Jesus