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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

fugaCIDADEs

 

A vida vai escorrendo
breve e leve
neste Janeiro
de nevoeiro
pelos cantos lamacentos
de prédios pardacentos
grisalhos
de esforçados trabalhos
que esburaqueiam
e esfaqueiam
as calçadas paralelas
desta cidade matadora de estrelas.
E nos braços nus das árvores
pousam tímidos pardais
recolhidos de frios tais
que os próprios lanudos cães
fogem amedrontados
e atarantados
para o fundo sombrio e quente
da sua casota ; se é que tem
(porque se for vadio
dormirá ao relento
e suportará o frio
que sopra o serrano vento
da Estrela, gélido e nevado
de sincelo coroado).
 
JM
 
[Com este texto termino a publicação dos poemas que estiveram no Café Concerto. Outros irei publicando da minha autoria, em paralelo com os de autores consagrados que continuarei a divulgar, quer para celebrar efemérides, quer por gosto pessoal. Que a poesia suavize a vida!]
 

fugaCIDADEs

Flores brancas tontas

ensaiam danças belas

na música do vento  invernal;

parece que angustiadas,

procuram um sítio para pousar

trazendo consigo estrelas

num bailado circular e infernal.

Mas a natureza receptiva

tecendo lençóis de alvura

no lugar dos negros barrocais

sempre criadora e construtiva

alumiará a nocturna negrura

com uma esplendorosa, bela e altiva

brancura espessa e ideal.

JM

 

fugaCIDADEs

O frio abateu-se sobre a cidade

Sentou-se nos bancos do jardim

Desceu as sinuosas ruas

Subiu as calçadas

E, cansado, esparramou-se

A todo o comprido

Aos pés de D. Sancho

Admirando, estupefacto,

A recém-ajustada Praça Velha.

                                               Dez. 05

 

JM

 

fugaCIDADEs

Céleres as nuvens voam pelo azul

levadas pela pressa

de chegar a lado nenhum;

da chuva, deixam no ar gotas minúsculas

que irrigam lentamente as entranhas da terra;

trazem com elas o Norte soturno sinistro no frio e no gelo

trazem a branca beleza gélida dos pássaros rasantes do Estio

passageiros de lugares repentinos

efémeros nas vistas sequenciais

aparcarão lá mais para o sul

onde há a substância do azul

 

JM

 

fugaCIDADEs

A cidade aninha-se em degraus:

montanha abaixo vai descendo

desde os píncaros mais altos;

as casas abrigam-se do Inverno

aconchegando-se umas às outras

a aquecerem-se friorentas.

 

A cidade escalona-se monte abaixo

forte, farta, fiel e fria

e na sua formosura acalenta

frios agrestes da “Meseta”

e derrete os gelos forasteiros.

 

JM

"O beiral"-fugaCIDADEs

             “Beiral”

                                                           (A C. Verde)

Ao passar hoje, naquela rua,

que já milhentas vezes percorrera,

cheirou-me algo, que nunca vira,

senti o que nunca  soubera.

 

Num canto esquecido e tímido,

forte na solidez da construção,

um beiral de ninhos, erguido,

com requintes de insinuação.

 

Um após outro encarreirados,

- qual deles se mostrava mais seguro! -

feitos com lama por enamorados,

presente com olhos de futuro!

 

Com que amor, com que paixão,

foram lineados até ao pormenor!

(Quanto mais acelera o coração

mais perfeita a obra do amor!)

 

Que vai e vem! Que chilreada alegre!

A pensar fui seguindo meu caminho:

que contraste entre o beirado do casebre

e o mundo, ausente de carinho!

 

J M