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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

À Chegada do Inverno


Nem sempre 
a vida acolhe ou alimenta 
os nomes do passado, o seu abismo 
repetido num sonho, na mais lenta 
assombração, no mais íntimo sismo 

Do que chamamos alma. Não existo 
sem essa febre mansa que relembro 
enquanto as nuvens cobrem tudo isto 
com o frio escuro de um dezembro 

Longe de mim, de ti, de qualquer lei 
ou juízo a que dêmos um sentido: 
o que finjo saber é o que não sei 
e as palavras colam-se ao ouvido. 

 

Fernando Pinto do Amaral

A única resposta

 
Jantáramos os dois pela primeira vez:
amizade ou amor, pouco interessava
desde que ali estivesses. O meu mundo
ia mudando à medida do teu,
a cada gesto vão da vã conversa
antes que fôssemos p´lo Bairro Alto
e enfim o Lumiar, a tua casa.
Eu podia contar uma história, dizer
como aquele rosto atravessava o meu - mas não,
«nada de narrativas, nunca mais».
Apenas a certeza de estar morto
há tanto tempo, que já não me lembro
de côr nenhuma dos teus olhos. Não,
já não existe o dia nem a noite
e este silêncio deve ser talvez
a única resposta. É bem melhor
ficar à espera de que não regresses.



Fernando Pinto do Amaral
A Escada de Jacob

Feliz, quem sabe, ...

Feliz, quem sabe, o vento. Sem memória,
beijando-me nos lábios, ele abraça
o meu destino às cegas na paisagem.
É sempre nesse instante que regresso
à poalha do céu onde começa
talvez a maldição, talvez o encanto
de invocar-te em silêncio. Porque, eu sei,
entre palavras morre a cor dos sonhos,
o vão pressentimento de estar vivo.

Feliz talvez o vento e no entanto,
arrasta ainda areia e vagas vozes
na praia ao abandono. A luz da tarde
encobriu-se de névoa, só o mar
ficou perto de mim - agora é simples:
as ondas trazem novo o teu sorriso,
movem o seu abismo nos meus olhos,
mas lágrimas nenhumas vão salvar-me o corpo,
a alma, as cinzas, esta vida.

 

Fernando Pinto do Amaral, Acédia

É MAIS FÁCIL...

É mais fácil partir quando o silêncio
transpõe a tua voz.
Mais simples celebrar a tão efémera
certeza de estares vivo.

A música do ar esvai-se nas sombras,
tu sabes que é assim,
que os dias correm céleres, não tentes
perseguir o seu rasto - repara
como em abril as aves são felizes.

Sê como elas: não perguntes nada,
deixa que o sol responda à flor da tarde
e esquece-te do mundo.

 

Fernando Pinto do Amaral

Fronteira



É doce
a tentação do labirinto
assim que o sono chega e se propaga
ao contorno das coisas. mal as sinto
quando confundo a onda sempre vaga

deste falso cansaço que regressa
ao som da minha estranha e dócil fala
cada vez mais submersa como essa
pequena luz da rua que resvala

plo interior da noite. É quase um sonho
A respirar lá fora enquanto o quarto
se dilui na fronteira que transponho
e afoga a consciência de onde parto

agora sem direito nem avesso
no incerto momento em que adormeço.

 

Fernando Pinto do Amaral