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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

O Amor, ...

O amor, quando se revela,
Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

 

Quem quer dizer o que sente

Não sabe o que há-de dizer.

Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

 

Ah, mas se ela adivinhasse,
Se pudesse ouvir o olhar,
E se um olhar lhe bastasse
P'ra saber que a estão a amar!

 

Mas quem sente muito, cala;
Quem quer dizer quanto sente
Fica sem alma nem fala
Fica só, inteiramente!

 

Mas se isto puder contar-lhe
O que não lhe ouso contar,
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...

 

Fernando Pessoa.

Feliz 2018!

feliz.jpg

 

Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento

Fernando Pessoa

A Lua (dizem os Ingleses)

A Lua (dizem os Ingleses)

É feita de queijo verde.

Por mais que pense mil vezes

Sempre uma ideia se perde.

 

E era essa, era, era essa,

Que haveria de salvar

Minha alma da dor da pressa

De... não sei se é desejar.

 

Sim, todos os meus desejos

São de estar sentir pensando...

A Lua (dizem os Ingleses)

É azul de quando em quando.

 

Fernando Pessoa

Mandamentos

Mandamentos

1. Não tenhas opiniões firmes, nem creias demasiadamente no valor de tuas opiniões.

2. Sê tolerante, porque não tens a certeza de nada.

3. Não julgues ninguém, porque não vês os motivos, mas só os atos...

4. Espera o melhor e prepara-te para o pior.

5. Não mates nem estragues, porque, como não sabes o que é a vida, exceto que é um mistério, não sabes que fazes matando ou estragando, nem que forças desencadeias sobre ti mesmo se estragares ou matares.

6. Não queiras reformar nada, porque, como não sabes a que leis as coisas obedecem, não sabes se as leis naturais estão de acordo, ou com a justiça, ou, pelo menos, com a nossa ideia de justiça.

7. Faz por agir como os outros e pensar diferentemente deles. Não cuides que há relação entre agir e pensar. Há oposição. Os maiores homens de ação têm sido perfeitos animais na inteligência. Os mais ousados pensadores têm sido incapazes de um gesto ousado ou de um passo fora do passeio.

 

Fernando Pessoa, do livro "Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa" . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.

Arte - Almada Negreiros, Retrato de Fernando Pessoa 1964

Mandamentos 1. Não tenhas opiniões firmes, nem creias demasiadamente no valor de tuas opiniões.2. Sê tolerante, porque não tens a certeza de nada.3. Não julgues ninguém, porque não vês os motivos, mas só os atos...4. Espera o melhor e prepara-te para o pior.5. Não mates nem estragues, porque, como não sabes o que é a vida, exceto que é um mistério, não sabes que fazes matando ou estragando, nem que forças desencadeias sobre ti mesmo se estragares ou matares.6. Não queiras reformar nada, porque, como não sabes a que leis as coisas obedecem, não sabes se as leis naturais estão de acordo, ou com a justiça, ou, pelo menos, com a nossa ideia de justiça.7. Faz por agir como os outros e pensar diferentemente deles. Não cuides que há relação entre agir e pensar. Há oposição. Os maiores homens de ação têm sido perfeitos animais na inteligência. Os mais ousados pensadores têm sido incapazes de um gesto ousado ou de um passo fora do passeio.Fernando Pessoa, do livro "Pessoa por Conhecer - Textos para um Novo Mapa" . Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990. Arte - Almada Negreiros, Retrato de Fernando Pessoa 1964

Fiquei doido, fiquei tonto…

 

Fiquei doido, fiquei tonto...

Meus beijos foram sem conto,

Apertei-a contra mim,

Aconcheguei-a em meus braços,

Embriaguei-me de abraços...

 

Fiquei tonto e foi assim...

Sua boca sabe a flores,

Bonequinha, meus amores,

Minha boneca que tem

Bracinhos para enlaçar-me,

 

E tantos beijos p'ra dar-me

Quantos eu lhe dou também.

Ah que tontura e que fogo!

Se estou perto dela, é logo

Uma pressa em meu olhar,

 

Uma música em minha alma,

Perdida de toda a calma,

E eu sem a querer achar.

Dá-me beijos, dá-me tantos

Que, enleado nos teus encantos,

 

Preso nos abraços teus,

Eu não sinta a própria vida,

Nem minha alma, ave perdida

No azul-amor dos teus céus.

Não descanso, não projecto

 

Nada certo, sempre inquieto

Quando te não beijo, amor,

Por te beijar, e se beijo

Por não me encher o desejo

Nem o meu beijo melhor.

 

Fernando Pessoa.

Sim, sei bem

Sim, sei bem

Que nunca serei alguém.

    Sei de sobra

Que nunca terei uma obra.

    Sei, enfim,

Que nunca saberei de mim.

    Sim, mas agora,

Enquanto dura esta hora,

    Este luar, estes ramos,

Esta paz em que estamos,

    Deixem-me crer

O que nunca poderei ser.

 

Ricardo Reis

ACASO

 

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.

Mas não, não é aquela.

 

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

 

Perco-me subitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa.

 

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

 

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!

Ao menos escrevem-se versos.

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar.

Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!

 

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...

Mas isto era a respeito de uma rapariga,

De uma rapariga loira,

Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

Porque todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

 

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?

Pode ser... A rapariga loira?

É a mesma afinal...

Tudo é o mesmo afinal...

 

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.


Álvaro de Campos

A aranha do meu destino

A aranha do meu destino

Faz teias de eu não pensar.

Não soube o que era em menino,

Sou adulto sem o achar.

É que a teia, de espalhada

Apanhou-me o querer ir...

Sou uma vida baloiçada

Na consciência de existir

A aranha da minha sorte

Faz teia de muro a muro...

Sou presa do meu suporte.



Fernando Pessoa, 10-8-1932

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa

 

Cai chuva. É noite. Uma pequena brisa

        Substitui o calor.

P'ra ser feliz tanta coisa é precisa.

        Este luzir é melhor.

 

O que é a vida? O espaço é alguém para mim.

        Sonhando sou eu só.

A luzir, em quem não tem fim

        E, sem querer, tem dó.

 

Extensa, leve, inútil passageira,

        Ao roçar por mim traz

Uma ilusão de sonho, em cuja esteira

        A minha vida jaz.

 

Barco indelével pelo espaço da alma,

        Luz da candeia além

Da eterna ausência da ansiada calma,

        Final do inútil bem.

 

Que se quer, e, se veio, se desconhece

        Que, se for, seria

O tédio de o haver... E a chuva cresce

        Na noite agora fria.

 

 

Fernando Pessoa, 18-9-1920