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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

CAIS

“Ah, todo o cais é uma saudade de pedra.” – Fernando Pessoa

 

Sento-me no cais da tarde

E ouço o vento respirar a saudade.

Penso-me e sinto que arde

O tempo vespertino na idade

 

De uma infância que não tive.

Restauro as imagens guardadas,

O menino de escola e bibe

Regato breve de águas paradas.

 

Espalho-me como Caeiro pela encosta

E sou uma parcela do rebanho pessoal

De um Reis epicurista e que não gosta

De se sentir exageradamente banal.

 

Vejo o cais - da Ode Marítima - eufórico

Da modernidade ascendente e citadina.

E a pedra onde me sento e sinto plectórico

Ergue-se na minha mente em neblina.

 

Eivado de Pessoa, entro no meu destino

De procurar palavras exactas, expressivas,

Mas encontro só o eco inerte sem tino

E deserto de euforias modernas e vivas.

 

J M 30.11.2019

 

XIX

 

 

O luar quando bate na relva

Não sei que coisa me lembra...

Lembra-me a voz da criada velha

Contando-me contos de fadas.

E de como Nossa Senhora vestida de mendiga

Andava à noite nas estradas

Socorrendo as crianças maltratadas...

 

Se eu já não posso crer que isso é verdade

Para que bate o luar na relva?

 

Alberto Caeiro, Guardador de rebanhos

A Morte Chega Cedo

A morte chega cedo,
Pois breve é toda vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida.

O amor foi começado,
O ideal não acabou,
E quem tenha alcançado
Não sabe o que alcançou.

E tudo isto a morte
Risca por não estar certo
No caderno da sorte
Que Deus deixou aberto.

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

Feliz ano novo!

 

 

Eu amo tudo o que foi,

Tudo o que já não é,

A dor que já me não dói,

A antiga e errónea fé,

O ontem que dor deixou,

O que deixou alegria

Só porque foi, e voou

E hoje é já outro dia.

 

Poesias Inédita, Fernando Pessoa

 

Porque amanhã diremos como o poeta - "e hoje é já outro dia" - façamos dele uma nova aventura e assim sucessivamente nos 364 restantes cheios de alegria, saúde e boa disposição.

Bom Ano aos leitores e frequentadores deste recanto.

Alvaro de Campos

No universo uno e diverso de Fernando Pessoa, sou irmão gémeo de Alberto Caeiro e respiro a natureza que ele respira sem coragem de julgar-me igual a ele na poética. Mas há dias em que a loucura inexacta de Álvaro de Campos se me impõe imediata e inflexível e inexorável. Nesses dias os impulsos saem instintivos  e normalmente descambam para cima dos outros. Será da chuva, será da psiqué emocionalmente desiquilibrada, será da consciência da inutilidade de uma vida? Questões a que me é difícil responder porque a luta entre a sensação e a razão é indefinível e irresolúvel. Então, ... só me resta a identificação com este Campos:


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo
Pertencem ao meu modo de existir,
E eu nunca sei como hei-de concluir
As sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente, reparei
Se na verdade sinto o que sinto. Eu
Serei tal qual pareço em mim? serei

Tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
Nem sei bem se sou eu quem em mim sente.


Lisboa, (uns seis a sete meses antes do Opiário) Agosto 1913