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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Onde me me levas rio que cantei.

 

Onde me levas, rio que cantei,
esperança destes olhos que molhei
de pura solidão e desencanto?
Onde me leva?, que me custa tanto.

Não quero que conduzas ao silêncio
duma noite maior e mais completa.
com anjos tristes a medir os gestos
da hora mais contrária e mais secreta.

Deixa-me na terra de sabor amargo
como o coração dos frutos bravos.
pátria minha de fundos desenganos,
mas com sonhos, com prantos, com espasmos.

Canção, vai para além de quanto escrevo
e rasga esta sombra que me cerca.
Há outra fase na vida transbordante:
que seja nessa face que me perca.

Eugénio de Andrade

Eugénio

ENTRE MARÇO E ABRIL

Que cheiro doce e fresco,
por entre a chuva
me traz o sol,
me traz o rosto,
entre março e abril
o rosto que foi meu,
o único
que foi afago e festa e primavera?

O cheiro puro de só da terra!
não das mimosas,
que já tinham florido
no meio dos pinheiros;
não dos lilases,
pois era cedo ainda
para mostrarem
o coração às rosas;
mas das tímidas, doces flores
de cor difícil,
entre limão e vinho,
entre marfim e mel
abertas no canteiro junto ao tanque

Frésias,
ó pura memória
de ter cantado –
pálidas, fragrantes,
entre chuva e sol
e chuva
- que mãos vos colhem,
agora que estão mortas
as mãos que foram minhas?

Eugénio de Andrade, "Coração do Dia" (1958)

Eugénio de Andrade

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão.
O seu corpo perfeito, linha a linha,
derramava-se no meu, e eu sentia
nele o pulsar do próprio coração.

Moreno, era a forma das pedras e das luas.
Dentro de mim alguma coisa ardia:
a brancura das palavras maduras
ou o medo de perder quem me perdia.

Hoje deitei-me ao lado da minha solidão
e longamente bebi os horizontes.
E longamente fiquei até sentir
o meu sangue jorrar nas próprias fontes.

Eugénio de Andrade, "As Mãos e Os Frutos"

SOPHIA (1919-2019)

Poema para Sophia de Mello Breyner Andresen

 

Não sei porque floriram no meu rosto
os olhos e os rostos que há em ti.
Floriram por acaso, ao sol de Agosto
sem mesmo haver Agosto ou sol em mim.
Não sei porque floriram: se o orvalho os queima
(Ponho as mãos nos olhos para os proteger!)
Tão estranho! florirem no meu rosto
olhos e rostos que não posso ver.
.
Eugénio de Andrade,
Fevereiro de 1946

Março voltou

e a.jpg

 

 

Março voltou, esta
ácida loucura de pássaros
está outra vez à nossa porta,
o ar

 

de vidro vai direito ao coração.
Também elas cantam, as montanhas:
somente nenhum de nós
as ouve, distraídos

 

com o monótono silabar do vento
ou doutros peregrinos.
Já sabeis como temos ainda restos
de pudor.

 

e pelo mundo
uma enorme, enorme indiferença.

 

Eugénio de Andrade

Pequena Elegia de Setembro

 

menino sorridente oferecendo flores.jpg

Não sei como vieste, 
mas deve haver um caminho 
para regressar da morte. 

Estás sentada no jardim, 
as mãos no regaço cheias de doçura, 
os olhos pousados nas últimas rosas 
dos grandes e calmos dias de setembro. 

Que música escutas tão atentamente 
que não dás por mim? 
Que bosque, ou rio, ou mar? 
Ou é dentro de ti 
que tudo canta ainda? 

Queria falar contigo, 
Dizer-te apenas que estou aqui, 
mas tenho medo, 
medo que toda a música cesse 
e tu não possas mais olhar as rosas. 
Medo de quebrar o fio 
com que teces os dias sem memória. 

Com que palavras 
ou beijos ou lágrimas 
se acordam os mortos sem os ferir, 
sem os trazer a esta espuma negra 
onde corpos e corpos se repetem, 
parcimoniosamente, no meio de sombras? 

Deixa-te estar assim, 
ó cheia de doçura, 
sentada, olhando as rosas, 
e tão alheia 
que nem dás por mim. 

Eugénio de Andrade

Sobre a Palavra

Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama

Assim se morre dizias tu
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada

Interminavelmente

Eugénio de Andrade, in "Véspera da Água"

Pequena Elegia de Setembro

Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
Dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade, in 'Antologia Poética'