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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

João Tordo - As Três vidas

«Não, fica. Fica.» Tornei a sentar-me, relutante. «Acho que, depois do que fizeste, tens direito a estar connosco nos melhores momentos.»

Camila pareceu ficar um pouco mais tímida, ao escutar as palavras do avô. «Tenho receio de o deixar assim, avô. Tenho medo.»

«Medo de que eu morra?», perguntou Millhouse Pascal, a voz saindo-lhe do fundo da garganta.

«Por favor. Ninguém morre de uma fractura na bacia. Não diga essas coisas. Tenho medo de que fique sozinho. O Gustavo já se foi embora, a Nina também.»

«Tens medo da minha solidão, porque temes toda a espécie de solidão. Olha para mim. Tenho mais de setenta anos. A solidão é uma benesse, e não um tormento. Vivi mais vidas do que um batalhão de homens. Para além disso, enquanto tiver o Artur, nunca estarei sozinho.»

«Tem mais do que o Artur, agora», disse Camila, olhando para mim. Millhouse Pascal também me olhou.

«Sim, por agora. Mas as pessoas jovens acabam por seguir as suas vidas. E o curso natural das coisas. Deposito, porém, grandes esperanças neste rapaz. É um rapaz especial.» Falavam de mim como se eu não estivesse ali.

«E tu, estás pronta?»

«Para partir?»

«Para deixares tudo isto para trás.»

«Não fale assim. Virei visitá-lo sempre que possa.»

«Visitares, não visitares... É a mesma coisa, no fundo. Quando deixei este país, pouco mais velho do que tu és agora, ainda desconhecia o efeito que o mundo tem em nós. Partimos de um lugar achando que um dia voltaremos; vivemos tudo de coração aberto; e, quando damos por nós, somos incapazes de regressar.»

«O avô já regressou há muitos anos.»

«Regressei? Será mesmo verdade?»

«Está aqui, não está?»

«A presença física não é prova de nada. O lugar onde vivemos é o lugar que habitamos em espírito. E, em espírito, nunca regressei. Estou espalhado pelas almas de todas as pessoas que conheci, de todas as coisas que, por lhes ter tocado, modifiquei. Irás aprender isso com o tempo. Um homem não é uma entidade, são muitas e, se não nos decidimos, a tempo certo, por uma delas, acabamos feitos em retalhos.»

JOSÉ RÉGIO - 40 ANOS DA SUA MORTE

 

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, é um escritor português, natural de Vila do Conde, que morreu faz hoje precisamente 40 anos. Foi um dos fundadores da revista Presença e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, como poeta é que, todavia, primeiramente se impôs e mais larga audiência depois atingiu: não há hoje, talvez, poeta contemporâneo que usufrua de tanto prestígio junto do grande público, muito embora esse prestígio se deva, nalguns casos, a características menos positivas da sua poesia, — tais como um tom declamatório, uma imaginística demasiado acessível e uma excessiva preocupação de tudo miudamente explicar, que se confunde, não raro, com a sua real vocação de analista e de psicólogo.

Com o livro de estreia — Poemas de Deus e do Diabo (1925) — apresentou J. R. quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade; a consciência da frustração de todo o amor humano; o orgulhoso recurso à solidão; a problemática da sinceridade perante os outros e perante si mesmo.

 

David Mourão-Ferreira, Dicionário da Literatura