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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Daniel Faria

A mão aberta já não liga
E o sol desce tão devagar como o último voo das pombas.
Há nos meus olhos dois poços
Na paisagem
Duas estrelas que ferem como rodas dentadas dentro de máquinas.
E é noite. No meio do escuro peço
Uma pedra incendiada. Pego-a com ambas as mãos
Levo-a à boca e das chamas bebo
Água

Daniel Faria, "Poesia", p. 48

Daniel Faria

Dai-me da água ou da resina de um ramo
Ou o baloiço apenas
Da sombra, a verdura que o move
O aroma que sobe o equilíbrio das folhas

Dai-me o oxigénio para aves que passam
O chão de combustíveis adubado pelas águas
Um pássaro de líquido, de vento, de coisas viajadas
O movimento do mundo

O mundo desloca-me em segredo sem que os homem mudem

Daniel Faria, "Dos Líquidos"

Amo o caminho

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 (1971-1999)

 

Amo o caminho que estendes por dentro das minhas divisões. 
Ignoro se um pássaro morto continua o seu voo 
Se se recorda dos movimentos migratórios 
E das estações. 
Mas não me importo de adoecer no teu colo 
De dormir ao relento entre as tuas mãos. 

Daniel Faria, in "Dos Líquidos" 

Quero a Fome de Calar-me

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Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único 
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra 
Que trago para sentar-me no banquete 

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver 
Quando plantas a vinha, como abres 
A fonte, o curso caudaloso 
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo 

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa 
Chaga do pastor 
Que abriu o redil no próprio corpo e sai 
Ao encontro da ovelha separada. Cerco 

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes 
A flor — várias árvores cortadas 
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos 
Seguem a linha do canivete nos troncos 

As mãos acima da cabeça adornam 
As águas nocturnas — pequenos 
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas 

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio 
Alveolar expira — e eu 
Estendo-as sobre a mesa da aliança 

Daniel Faria

Sem outra palavra para mantimento

Sem outra palavra para mantimento

Sem outra força onde gerar a voz 

Escada entre o poço que cavaste em mim e a sede 

Que cavaste no meu canto, amo-te 

Sou cítara para tocar as tuas mãos. 

Podes dizer-me de um fôlego 

Frase em silêncio 

Homem que visitas 

Ó seiva aspergindo as partículas do fogo 

O lume em toda a casa e na paisagem 

Fora da casa 

Pedra do edifício aonde encontro 

A porta para entrar 

Candelabro que me vens cegando. 

Sol 

Que quando és noturno ando 

Com a noite em minhas mãos para ter luz.

 

Daniel Faria, "Dos Líquidos"

...

Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.


Daniel Faria

Um coração de sangue - Daniel Faria


Um coração de sangue
Um coração de xisto e aço
Um coração angular e redondo
Como a pedra que te abre
Do interior do chão

Um coração solar
De granito
De carne
Curado da noite de nascença

Um coração de homem
Um coração de homem vivo
Um coração de criança ao colo
Interior
– Mais interior do que o sangue no coração que me darás -

Peço um coração
Nuclear

Infância - Daniel Faria


e jogava o pião com Deus
enquanto minha mãe estendia roupa
e o meu pai mendigava o pão

e minha alegria nesse tempo
era muito próxima da dos meninos
e de Deus que ganhava sempre

e não sei quem perdi primeiro:
o pião ou Deus
apenas sei que Deus continua
a jogar com outros meninos

e que no Outono quando saio à praça
nos sentamos e falamos muito
do suave rodopiar das folhas



Daniel Faria
In “Oxalida”

Pórtico - Daniel Faria

Com os meus amigos aprendi que o que dói às aves
Não é o serem atingidas, mas que,
Uma vez atingidas,
O caçador não repare na sua queda

 

(Daniel Faria nasceu em 1971, em Baltar, Paredes, Portugal. Licenciou-se em Teologia na Universidade Católica Portuguesa e em Estudos Portugueses na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Recebeu vários prémios literários relativos a inéditos de poesia e conto.  Colaborou nas revistas Atrium, Humanística e Teologia, Via Spiritus e Limiar.  Faleceu, em 9 de Junho de 1999.)

 

[Para saber mais: http://www.danielfaria.org/]