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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Manuel António Pina

AS VOZES

 

A infância vem

pé ante pé

sobe as escadas

e bate à porta

 

- Quem é?

- É a mãe morta

- São coisas passadas

- Não é ninguém

 

Tantas vozes fora de nós!

E se somos nós quem está lá fora

e bate à porta? E se nos fomos embora?

E se ficamos sós?

 

Nenhuma palavra e nenhuma lembrança

Manuel António Pina

Completas

A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.

E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.

Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.

 

Poesia Reunida

Manuel António Pina

Esplanada

Naquele tempo falavas muito de pefeição
da prosa dos versos irregulares
onde cantam os sentimentos irregulares.
Envelhecemos todos, tu , eu e a discussão.

agora lês saramagos & coisas assim
e eu já não fico a ouvir-te como antigamente
olhando as tuas pernas que subiam lentamente
até um sítio escuro de mim.

O café agora é um banco, tu professora de liceu;
Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu .
Agora as tuas pernas são coisas inúteis, andantes,
e não caminhos por andar como dantes.

Manuel António Pina

Tudo o que te disser

 

São feitas de palavras as palavras

e da melancolia da

ausência da prosa e da ausência da poesia.

 

É o que falta que fala

do lugar do exílio

do sentido e da falta de sentido.

 

Tudo o que te disser

tudo o que escrever

sou eu a perder-te,

 

cada palavra entre

o que em mim é corpo

e é nela sopro.

 

"Nenhuma palavra e nenhuma lembrança"

 

[Sobre a semana do ciclo do poeta, recordo o JN.(16.01.2010)]

Manuel António Pina

 

 

 

Algo mais elementar que o espaço e o tempo,

e a escuridão luminosa do Areopagita,
uma hipótese ilegível, antes do pensamento,
uma sílaba só de uma palavra não dita,

sem sentido e sem finalidade, apenas uma ocasião,
como um olho único e cego que vê
do fundo da sepultura da razão,
vaste comme la nuit et comme la clarté.

Um sonho
de uma sombra de quê?

 

Os Livros

Manuel António Pina

Eu não procuro nada em ti,
nem a mim próprio, é algo em ti
que procura algo em ti
no labirinto dos meus pensamentos.

 

Eu estou entre ti e ti,
a minha vida, os meus sentidos
(principalmente os meus sentidos)
toldam de sombras o teu rosto.

 

O meu rosto não reflecte a tua imagem,
o meu silêncio não te deixa falar,
o meu corpo não deixa que se juntem
as partes dispersas de ti em mim.

 

Eu sou talvez
aquele que procuras,
e as minhas dúvidas a tua voz
chamando do fundo do meu coração.