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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

A CANÇÃO DAS PERDIDAS

dorna.jpg

 

A Vianna da Motta

I

Quem por amôr se perdeu
Não chore, não tenha pena.
Uma das santas do céu
- É Maria Magdalena...

 

II

Minha mãe foi o que eu sou.
Eu sou o que tantas são.
Que triste herança te dou,
Filha do meu coração!

 

III

Meu pae foi para o degredo
Era eu inda pequena.
Se não morresse tão cedo,
Morria agora – de pena...

 

IV

E ha no mundo quem afronte
Uma mulher quando cae!
Nasce agua limpa na fonte,
Quem a suja é quem lá vae...

 

V

Aquelle que me roubou
A virtude de donzella
Se outra honra lhe não dou,
-É porque só tive aquella!...

 

VI

Nós temos o mesmo fado,
Oh fonte d'agua cantante,
Quem te quer, pára um boccado.
Quem não quer, pássa adeante...

 

VII

O meu amôr, por amal-o,
Poz-me o peito numa chaga:
Deu-me facadas. Deixal-o.
Mas ao menos não me paga!

 

VIII

Nem toda a agua do mar
Por estes olhos chorada
Daria bem a mostrar
O que eu sou de desgraçada!

 

IX

Como querem vêr contente
Este paiz desgraçado,
Se dão só livros á gente
Nas escolas do peccado...

 

X

Dormia o meu coração
Cançado de fingimento.
Bateste-me, e vae então
Acordou nesse momento.

 

XI

Se aquillo que a gente sente,
Cá dentro, tivesse vóz,
Muita gente... toda a gente
Teria pena de nós!

 

Augusto Gil, Canto da Cigarra

(grafia da época; segundo a tradição ter-se-ia inspirado no chafariz da Dorna.)

A MINHA MÃE

 
 

 

As ilusões semelham-se a um colar
De pérolas alvíssimas, de espuma.
Se o fio que as segura se quebrar,
Caem no chão, dispersas, uma a uma.
 
Caem no chão, dispersas, uma a uma,
Se o fio que as segura se quebrar;
Mas entre tantas sempre fica alguma,
Sempre alguma suspensa há-de ficar.
 
Das minhas ilusões, dos meus afectos,
Longo colar de amores predilectos,
Muitos rolaram já no pó também.
 
Um só dentre eles não cairá jamais:
Aquele que eu mais prezo entre os demais,
— O teu amor santíssimo de mãe.
 
Augusto Gil, Musa Cérula

Luar de Janeiro

Luar de janeiro,

Fria claridade

Á luz delle foi talvez

Que primeiro

A bocca dum português

Disse a palavra saudade...

Luar de platina,

Luar que allumia

Mas que não aquece,

Photographia

D'alegre menina

Que ha muitos annos já... envelhecesse.

Luar de janeiro,

O gelo tornado

Luminosidade...

Rosa sem cheiro,

Amor passado

De que ficasse apenas a amizade...

Luar das nevadas,

Algido e lindo,

Janellas fechadas,

Fechadas as portas,

E elle fulgindo,

Limpido e lindo,

Como boquinhas de creanças mortas,

Na morte geladas

-E ainda sorrindo...

Luar de janeiro,

Luzente candeia

De quem não tem nada,

-Nem o calor dum brazeiro,

Nem pão duro para a ceia,

Nem uma pobre morada...

Luar dos poetas e dos miseraveis,

Como se um laço estreito nos unisse,

São similhaveis

O nosso mau destino e o que tens...

De nós, da nossa dôr, a turba - ri-se

-E a ti, sagrado luar ... ladram-te os cães!
 

Augusto Gil, Luar de Janeiro (1909)

 

[Acabei de chegar da rua, regressando do meu local de trabalho, e, ao olhar para a beleza da LUA cheia, lembraram-me os versos do poeta e não resisti a transcrevê-los na sua grafia original de há 100 anos atrás. Com tanta beleza e recordação o frio agreste da meseta fica para segundo plano!!!!]

Museu da Guarda

 

 

    Uma pequena exposição sobre os 80 anos da morte do poeta: destacam-se os recortes de jornais da época que deram relevo ao falecimento e a transladação do corpo de Lisboa para o cemitério da Guarda. E não foram só jornais da cidade, mas de projecção nacional e com grande destaque!

 

Augusto Gil

 

A MINHA MÃE
 

 

As ilusões semelham-se a um colar
De pérolas alvíssimas, de espuma.
Se o fio que as segura se quebrar,
Caem no chão, dispersas, uma a uma.
 
Caem no chão, dispersas, uma a uma,
Se o fio que as segura se quebrar;
Mas entre tantas sempre fica alguma,
Sempre alguma suspensa há-de ficar.
 
Das minhas ilusões, dos meus afectos,
Longo colar de amores predilectos,
Muitos rolaram já no pó também.
 
Um só dentre eles não cairá jamais:
Aquele que eu mais prezo entre os demais,
— O teu amor santíssimo de mãe.
 
Musa Cérula
 

 

[ Nos 80 anos da morte do poeta - 26 de Fevereiro de 1929]

...

Já divulguei por aqui vários poemas deste nosso autor, com o objectivo de dar a conhecer outras facetas da sua poesia, porque praticamente só é conhecido pela Balada da Neve e pouco mais. Hoje volto à sua obra, por causa do Outono que se anuncia cada vez mais real e porque me lembrei dum seu poema, dos mais conhecidos, eivado de simpatia para com os sofredores, dentro da linha da piedade cristã mais franciscana e mais terna. O poema vale também pela harmonia e pela musicalidade das palavras.

 

ORAÇÃO
Outono. Morre o dia.
Cai sobre as coisas plácidas e calmas
Um véu de sombra e melancolia
Que dulcifica e embrandece as almas.
Todo o meu ser se invade
De enervantes e místicas doçuras,
De mansidão, de paz, de suavidade,
De sentimentos bons, de ideias puras.
No coração perpassa
Uma piedade e compaixão serena
Por todos os validos da desgraça,
Por tudo quanto sofre e quanto pena:
Pelos pequenos entes
Sem abrigo, sem lar e sem carinho,
Que são como avezinhas inocentes
Postas por mão cruel fora do ninho;
Pelos encarcerados
Que lançam, dentre as grades da cadeia,
Ao ar, à luz, aos montes afastados
A vista aflita e de amarguras cheia;
Pelos que vão pedindo
De porta em porta o pão de cada dia,
Tristes, que sempre a morte olham sorrindo
Porque ela unicamente os alivia;
Pelos que andam distantes
Entre cruezas, fomes e perigos,
Sentindo a nostalgia lancinante
Da pátria, da família, dos amigos;
E numa emoção crente,
Numa fé viva, forte e benfazeja,
A Deus suplico fervorosamente
Que os guie, que os socorra, que os proteja.
 
Musa Cérula

 

Quadras

 

 

 

 

 

 

Oh! Senhora de Mileu

Que estás num degrau da serra,

Tão pertelinho do céu
E tão chegadinha à terra...
 

 

Senhora, lírio divino
Posto em chão de giesta brava,
Este velho é o menino
Por quem minha Mãe rezava...
 
Ouve! Escuta as minhas preces!
Tanta dor não a mereço...
Senhora, não me conheces?
Até eu me desconheço!
 
Senhora dos namorados,
Graças ao teu valimento,
Dobrava o sino a finados,
Canta e dança a casamento...
 
Quem agora te alumia
Não são as velas do altar
— É a sagrada alegria
Duns noivos que vão casar...
 
Augusto Gil, O Craveiro da Janela
 

 

A víbora

 

A VÍBORA

(DE DEMÓDOCO)

 

 

Um dia, uma víbora mordeu num pé

                   A pérfida Cloé.
 
Perguntarão: Que sucedeu
À pérfida Cloé?... Morreu?...
 
Isso morreu ela!...
Mal sentiu a mordedela.
Não teve febre, nem ardor, nem nada.
 
— A bicha é que morreu envenenada!
 
Augusto Gil, Rosas desta manhã

A GOTA DE ÁGUA

A lágrima triste
Que por ti surgiu
Mal que tu a viste,
Quase se não viu...
 
Como quem desiste,
Logo se deliu...
E, mal lhe sorriste,
Logo te sorriu!
 
Já não era a dor,
O sinal aflito
Duma funda mágoa;
 
Era o infinito

— O infinito amor,

Numa gota de água...

 

Augusto Gil, Avena Rústica

DE PROFUNDIS CLAMAVI AD TE DOMINE

Ao charco mais escuro e mais imundo

Chega uma hora no correr do dia

Em que um raio de sol, claro e jucundo

O visita, o alegra, o alumia;

 

Pois eu, nesta desgraça em que me afundo

Nesta contínua e intérmina agonia,

Nem tenho um hora só dessa alegria

Que chega às coisas ínfimas do mundo!...

 

Deus meu, acaso a roda do destino

A movimentam vossas mãos leais

Num aceno impulsivo e repentino,

 

Sem que na cega turbulência a domem?

Senhor! Não é um seixo o que esmagais;

Olhai que é - o coração de um homem!...

 

 Augusto Gil, Luar de Janeiro