A Vianna da Motta
I
Quem por amôr se perdeu Não chore, não tenha pena. Uma das santas do céu - É Maria Magdalena...
II
Minha mãe foi o que eu sou. Eu sou o que tantas são. Que triste herança te dou, Filha do meu coração!
III
Meu pae foi para o degredo Era eu inda pequena. Se não morresse tão cedo, Morria agora – de pena...
IV
E ha no mundo quem afronte Uma mulher quando cae! Nasce agua limpa na fonte, Quem a suja é quem lá vae...
V
Aquelle que me roubou A virtude de donzella Se outra honra lhe não dou, -É porque só tive aquella!...
VI
Nós temos o mesmo fado, Oh fonte d'agua cantante, Quem te quer, pára um boccado. Quem não quer, pássa adeante...
VII
O meu amôr, por amal-o, Poz-me o peito numa chaga: Deu-me facadas. Deixal-o. Mas ao menos não me paga!
VIII
Nem toda a agua do mar Por estes olhos chorada Daria bem a mostrar O que eu sou de desgraçada!
IX
Como querem vêr contente Este paiz desgraçado, Se dão só livros á gente Nas escolas do peccado...
X
Dormia o meu coração Cançado de fingimento. Bateste-me, e vae então Acordou nesse momento.
XI
Se aquillo que a gente sente, Cá dentro, tivesse vóz, Muita gente... toda a gente Teria pena de nós!
Augusto Gil , Canto da Cigarra
(grafia da época; segundo a tradição ter-se-ia inspirado no chafariz da Dorna.)
As ilusões semelham-se a um colar
De pérolas alvíssimas, de espuma.
Se o fio que as segura se quebrar,
Caem no chão, dispersas, uma a uma.
Caem no chão, dispersas, uma a uma,
Se o fio que as segura se quebrar;
Mas entre tantas sempre fica alguma,
Sempre alguma suspensa há-de ficar.
Das minhas ilusões, dos meus afectos,
Longo colar de amores predilectos,
Muitos rolaram já no pó também.
Um só dentre eles não cairá jamais:
Aquele que eu mais prezo entre os demais,
— O teu amor santíssimo de mãe.
Augusto Gil, Musa Cérula
Luar de janeiro,
Fria claridade
Á luz delle foi talvez
Que primeiro
A bocca dum português
Disse a palavra saudade...
Luar de platina,
Luar que allumia
Mas que não aquece,
Photographia
D'alegre menina
Que ha muitos annos já... envelhecesse.
Luar de janeiro,
O gelo tornado
Luminosidade...
Rosa sem cheiro,
Amor passado
De que ficasse apenas a amizade...
Luar das nevadas,
Algido e lindo,
Janellas fechadas,
Fechadas as portas,
E elle fulgindo,
Limpido e lindo,
Como boquinhas de creanças mortas,
Na morte geladas
-E ainda sorrindo...
Luar de janeiro,
Luzente candeia
De quem não tem nada,
-Nem o calor dum brazeiro,
Nem pão duro para a ceia,
Nem uma pobre morada...
Luar dos poetas e dos miseraveis,
Como se um laço estreito nos unisse,
São similhaveis
O nosso mau destino e o que tens...
De nós, da nossa dôr, a turba - ri-se
-E a ti, sagrado luar ... ladram-te os cães!
Augusto Gil , Luar de Janeiro (1909)
[Acabei de chegar da rua, regressando do meu local de trabalho, e, ao olhar para a beleza da LUA cheia, lembraram-me os versos do poeta e não resisti a transcrevê-los na sua grafia original de há 100 anos atrás. Com tanta beleza e recordação o frio agreste da meseta fica para segundo plano!!!!]
Uma pequena exposição sobre os 80 anos da morte do poeta: destacam-se os recortes de jornais da época que deram relevo ao falecimento e a transladação do corpo de Lisboa para o cemitério da Guarda. E não foram só jornais da cidade, mas de projecção nacional e com grande destaque!
A MINHA MÃE
As ilusões semelham-se a um colar
De pérolas alvíssimas, de espuma.
Se o fio que as segura se quebrar,
Caem no chão, dispersas, uma a uma.
Caem no chão, dispersas, uma a uma,
Se o fio que as segura se quebrar;
Mas entre tantas sempre fica alguma,
Sempre alguma suspensa há-de ficar.
Das minhas ilusões, dos meus afectos,
Longo colar de amores predilectos,
Muitos rolaram já no pó também.
Um só dentre eles não cairá jamais:
Aquele que eu mais prezo entre os demais,
— O teu amor santíssimo de mãe.
Musa Cérula
[ Nos 80 anos da morte do poeta - 26 de Fevereiro de 1929]
Já divulguei por aqui vários poemas deste nosso autor, com o objectivo de dar a conhecer outras facetas da sua poesia, porque praticamente só é conhecido pela Balada da Neve e pouco mais. Hoje volto à sua obra, por causa do Outono que se anuncia cada vez mais real e porque me lembrei dum seu poema, dos mais conhecidos, eivado de simpatia para com os sofredores, dentro da linha da piedade cristã mais franciscana e mais terna. O poema vale também pela harmonia e pela musicalidade das palavras.
ORAÇÃO
Outono. Morre o dia.
Cai sobre as coisas plácidas e calmas
Um véu de sombra e melancolia
Que dulcifica e embrandece as almas.
Todo o meu ser se invade
De enervantes e místicas doçuras,
De mansidão, de paz, de suavidade,
De sentimentos bons, de ideias puras.
No coração perpassa
Uma piedade e compaixão serena
Por todos os validos da desgraça,
Por tudo quanto sofre e quanto pena:
Pelos pequenos entes
Sem abrigo, sem lar e sem carinho,
Que são como avezinhas inocentes
Postas por mão cruel fora do ninho;
Pelos encarcerados
Que lançam, dentre as grades da cadeia,
Ao ar, à luz, aos montes afastados
A vista aflita e de amarguras cheia;
Pelos que vão pedindo
De porta em porta o pão de cada dia,
Tristes, que sempre a morte olham sorrindo
Porque ela unicamente os alivia;
Pelos que andam distantes
Entre cruezas, fomes e perigos,
Sentindo a nostalgia lancinante
Da pátria, da família, dos amigos;
E numa emoção crente,
Numa fé viva, forte e benfazeja,
A Deus suplico fervorosamente
Que os guie, que os socorra, que os proteja.
Musa Cérula
Oh! Senhora de Mileu
Q ue estás num degrau da serra,
Tão pertelinho do céu
E tão chegadinha à terra...
Senhora, lírio divino
Posto em chão de giesta brava,
Este velho é o menino
Por quem minha Mãe rezava...
Ouve! Escuta as minhas preces!
Tanta dor não a mereço...
Senhora, não me conheces?
Até eu me desconheço!
Senhora dos namorados,
Graças ao teu valimento,
Dobrava o sino a finados,
Canta e dança a casamento...
Quem agora te alumia
Não são as velas do altar
— É a sagrada alegria
Duns noivos que vão casar...
Augusto Gil , O Craveiro da Janela
A VÍBORA
(DE DEMÓDOCO)
Um dia, uma víbora mordeu num pé
A pérfida Cloé.
Perguntarão: Que sucedeu
À pérfida Cloé?... Morreu?...
Isso morreu ela!...
Mal sentiu a mordedela.
Não teve febre, nem ardor, nem nada.
— A bicha é que morreu envenenada!
Augusto Gil, Rosas desta manhã
A lágrima triste
Que por ti surgiu
Mal que tu a viste,
Quase se não viu...
Como quem desiste,
Logo se deliu...
E, mal lhe sorriste,
Logo te sorriu!
Já não era a dor,
O sinal aflito
Duma funda mágoa;
Era o infinito
— O infinito amor,
N uma gota de água...
Augusto Gil , Avena Rústica
Ao charco mais escuro e mais imundo
Chega uma hora no correr do dia
Em que um raio de sol, claro e jucundo
O visita, o alegra, o alumia;
Pois eu, nesta desgraça em que me afundo
Nesta contínua e intérmina agonia,
Nem tenho um hora só dessa alegria
Que chega às coisas ínfimas do mundo!...
Deus meu, acaso a roda do destino
A movimentam vossas mãos leais
Num aceno impulsivo e repentino,
Sem que na cega turbulência a domem?
Senhor! Não é um seixo o que esmagais;
Olhai que é - o coração de um homem!...
Augusto Gil, Luar de Janeiro