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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Mascarada

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É Carnaval, e estão as ruas cheias

De gente que conserva a sensação,

Tenho intenções, pensamento, ideias,

Mas não posso ter máscara nem pão.

 

Esta gente é igual, eu sou diverso —

Mesmo entre os poetas não me aceitariam.

Às vezes nem sequer ponho isto em verso —

E o que digo, eles nunca assim diriam.

 

Que pouca gente a muita gente aqui!

Estou cansado, com cérebro e cansaço.

Vejo isto, e fico, extremamente aqui

Sozinho com o tempo e com o espaço.

 

Detrás de máscaras nosso ser espreita,

Detrás de bocas um mistério acode

Que meus versos anódinos enjeita.

 

Sou maior ou menor? Com mãos e pés

E boca falo e mexo-me no mundo.

Hoje, que todos são máscaras, és

Um ser máscara-gestos, em tão fundo...

 

Álvaro de Campos

Tenho uma Grande Constipação

Tenho uma grande constipação,
E toda a gente sabe como as grandes constipações
Alteram todo o sistema do universo,
Zangam-nos contra a vida,
E fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.

Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.

Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.

Álvaro de Campos, in "Poemas"
Heterónimo de Fernando Pessoa

ACASO

 

No acaso da rua o acaso da rapariga loira.

Mas não, não é aquela.

 

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

 

Perco-me subitamente da visão imediata,

Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,

E a outra rapariga passa.

 

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!

Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,

E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

 

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!

Ao menos escrevem-se versos.

Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar.

Se calhar, ou até sem calhar,

Maravilha das celebridades!

 

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...

Mas isto era a respeito de uma rapariga,

De uma rapariga loira,

Mas qual delas?

Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,

Numa outra espécie de rua;

Porque todas as recordações são a mesma recordação,

Tudo que foi é a mesma morte,

Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

 

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.

Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?

Pode ser... A rapariga loira?

É a mesma afinal...

Tudo é o mesmo afinal...

 

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.


Álvaro de Campos

DEMOGORGON

 

Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.

Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.

Pressinto um acontecimento do lado de lá das frontarias e dos movimentos.

 

Não, não, isso não!

Tudo menos saber o que é o Mistério!

Superfície do Universo, ó Pálpebras Descidas,

Não vos ergais nunca!

O olhar da Verdade Final não deve poder suportar-se!

 

Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!

A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,

Deve trazer uma loucura maior que os espaços

Entre as almas e entre as estrelas.

 

Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta gente;

Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente...

Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?

Não os quero abrir de viver! Ó Verdade, esquece-te de mim!

Poesias de Álvaro de Campos.

Ai, Margarida

 

Ai, Margarida,

Se eu te desse a minha vida,

Que farias tu com ela?

— Tirava os brincos do prego,

Casava c'um homem cego

E ia morar para a Estrela.

 

Mas, Margarida,

Se eu te desse a minha vida,

Que diria tua mãe?

— (Ela conhece-me a fundo.)

Que há muito parvo no mundo,

E que eras parvo também.

 

E, Margarida,

Se eu te desse a minha vida

No sentido de morrer?

— Eu iria ao teu enterro,

Mas achava que era um erro

Querer amar sem viver.

 

Mas, Margarida,

Se este dar-te a minha vida

Não fosse senão poesia?

— Então, filho, nada feito.

Fica tudo sem efeito.

Nesta casa não se fia.

 

Comunicado pelo Engenheiro Naval

       Sr. Álvaro de Campos em estado

                de inconsciência

                         alcoólica.


Álvaro de Campos, 1-10-1927

...

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Faltar é positivamente estar no campo!

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,

Deliberadamente à mesma hora...

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.


Álvaro de Campos

Às vezes tenho ideias felizes,

Às vezes tenho ideias, felizes,

Ideias subitamente felizes, em ideias

E nas palavras em que naturalmente se despejam...

 

Depois de escrever, leio...

Porque escrevi isto?

Onde fui buscar isto?

De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta

Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...

 

Álvaro de Campos

A minha alma partiu-se

A minha alma partiu-se como um vaso vazio. 
Caiu pela escada excessivamente abaixo. 
Caiu das mãos da criada descuidada. 
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso. 

Asneira? Impossível? Sei lá! 
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. 
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir. 

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. 
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. 
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim. 

Não se zanguem com ela. 
São tolerantes com ela. 
O que era eu um vaso vazio? 

Olham os cacos absurdamente conscientes, 
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles. 

Olham e sorriem. 
Sorriem tolerantes à criada involuntária. 

Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. 
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. 
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? 
Um caco. 
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali. 

Álvaro de Campos

Sou Eu

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, 
Espécie de acessório ou sobressalente próprio, 
Arredores irregulares da minha emoção sincera, 
Sou eu aqui em mim, sou eu. 

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. 
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. 
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim. 

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente, 
Como de um sonho formado sobre realidades mistas, 
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico, 
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima. 

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, 
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, 
De haver melhor em mim do que eu. 

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, 
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, 
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, 
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, 
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida. 

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica, 
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar, 
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo — 
A impressão de pão com manteiga e brinquedos 
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina, 
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela, 
Num ver chover com som lá fora 
E não as lágrimas mortas de custar a engolir. 

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado, 
O emissário sem carta nem credenciais, 
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro, 
A quem tinem as campainhas da cabeça 
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima. 

Sou eu mesmo, a charada sincopada 
Que ninguém da roda decifra nos serões de província. 

Sou eu mesmo, que remédio! ... 

Álvaro de Campos

Quero Acabar

    Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.
    Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.
    Falem pouco, devagar.
    Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento.
    O que quis?  Tenho as mãos vazias,
    Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua.
    O que pensei?  Tenho a boca seca, abstrata.
    O que vivi?  Era tão bom dormir!

 

   Álvaro de Campos