Tenho uma grande constipação, E toda a gente sabe como as grandes constipações Alteram todo o sistema do universo, Zangam-nos contra a vida, E fazem espirrar até à metafísica. Tenho o dia perdido cheio de me assoar. Dói-me a cabeça indistintamente. Triste condição para um poeta menor! Hoje sou verdadeiramente um poeta menor. O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.
Adeus para sempre, rainha das fadas! As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando. Não estarei bem se não me deitar na cama. Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
Excusez un peu... Que grande constipação física! Preciso de verdade e da aspirina.
Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterónimo de Fernando Pessoa
A minha alma partiu-se como um vaso vazio. Caiu pela escada excessivamente abaixo. Caiu das mãos da criada descuidada. Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá! Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu. Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia. Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada. E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela. São tolerantes com ela. O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes, Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem. Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas. Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros. A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco. E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo, Espécie de acessório ou sobressalente próprio, Arredores irregulares da minha emoção sincera, Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma. Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente, Como de um sonho formado sobre realidades mistas, De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico, Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.
E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua, Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda, De haver melhor em mim do que eu.
Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa, Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores, De haver falhado tudo como tropeçar no capacho, De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas, De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.
Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica, Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar, De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo — A impressão de pão com manteiga e brinquedos De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina, De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela, Num ver chover com som lá fora E não as lágrimas mortas de custar a engolir.
Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado, O emissário sem carta nem credenciais, O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro, A quem tinem as campainhas da cabeça Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.
Sou eu mesmo, a charada sincopada Que ninguém da roda decifra nos serões de província.
Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância. Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio. Falem pouco, devagar. Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento. O que quis? Tenho as mãos vazias, Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua. O que pensei? Tenho a boca seca, abstrata. O que vivi? Era tão bom dormir!