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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

NÃO

    Não, não é cansaço...  
    É uma quantidade de desilusão   
    Que se me entranha na espécie de pensar,   
    E um domingo às avessas  
    Do sentimento,  
    Um feriado passado no abismo... 

 

    Não, cansaço não é...  
    É eu estar existindo  
    E também o mundo,  
    Com tudo aquilo que contém,  
    Como tudo aquilo que nele se desdobra  
    E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais. 

 

    Não.  Cansaço por quê?  
    É uma sensação abstrata  
    Da vida concreta -  
    Qualquer coisa como um grito   
    Por dar,  
    Qualquer coisa como uma angústia   
    Por sofrer,  
    Ou por sofrer completamente,   
    Ou por sofrer como...  
    Sim, ou por sofrer como...  
    Isso mesmo, como... 

 

    Como quê?...  
    Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço. 

 

    (Ai, cegos que cantam na rua,   
    Que formidável realejo  
    Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!) 

 

    Porque oiço, vejo.  
    Confesso: é cansaço!...

 

 

     Álvaro de Campos

Os mortos! Que prodigiosamente - Álvaro de Campos

Os mortos! Que prodigiosamente

E com que horrível reminiscência

Vivem na nossa recordação deles!

 

 

A minha velha tia na sua antiga casa, no campo

Onde eu era feliz e tranquilo e a criança que eu era...

Penso nisso e uma saudade toda raiva repassa-me...

E, além disso, penso, ela já morreu há anos...

Tudo isto, vendo bem, é misterioso como um lusco-fusco...

Penso, e todo o enigma do universo repassa-me.

Revejo aquilo na imaginação com tal realidade

Que depois, quando penso que aquilo acabou

E que ela está morta,

Encaro com o mistério mais palidamente

Vejo-o mais escuro, mais impiedoso, mais longínquo

E nem choro, de atento que estou ao terror da vida...

 

 

Como eu desejaria ser parte da noite,

Parte sem contornos da noite, um lugar qualquer no espaço

Não propriamente um lugar, por não ter posição nem contornos,

Mas noite na noite, uma parte dela, pertencendo-lhe por todos os lados

E unido e afastado companheiro da minha ausência de existir...

 

 

Aquilo era tão real, tão vivo, tão actual!...

Quando em mim o revejo, está outra vez vivo em mim...

Pasmo de que coisa tão real pudesse passar...

E não existir hoje e hoje ser tão diverso...

Corre para o mar a água do rio, abandona a minha vista,

Chega ao mar e perde-se no mar,

Mas a água perde-se de si-própria?

Uma coisa deixa de ser o que é absolutamente

Ou pecam de vida os nossos olhos e os nossos ouvidos

E a nossa consciência exterior do Universo?

Onde está hoje o meu passado?

Em que baú o guardou Deus que não sei dar com ele?

Quando o revejo em mim, onde é que o estou vendo?

Tudo isto deve ter um sentido — talvez muito simples —

Mas por mais que pense não atino com ele.

Bicarbonato de Soda

 

     Súbita, uma angústia... 
     Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma! 
     Que amigos que tenho tido! 
     Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido! 
     Que esterco metafísico os meus propósitos todos! 

 

     Uma angústia,  
     Uma desconsolação da epiderme da alma,  
     Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço... 
     Renego. 
     Renego tudo. 
     Renego mais do que tudo. 
     Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles. 
     Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na 
      circulação do sangue? 
     Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro? 

 

     Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me? 
     Não: vou existir.  Arre!  Vou existir. 
     E-xis-tir... 
     E--xis--tir ... 

 

     Meu Deus!  Que budismo me esfria no sangue! 
     Renunciar de portas todas abertas, 
     Perante a paisagem todas as paisagens, 

 

     Sem esperança, em liberdade, 
     Sem nexo, 
     Acidente da inconseqüência da superfície das coisas, 
     Monótono mas dorminhoco, 
     E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas! 
     Que verão agradável dos outros! 

 

     Dêem-me de beber, que não tenho sede!

 

Álvaro de Campos

Álvaro de Campos

 

Começo a conhecer-me. Não existo. 
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,  
ou metade desse intervalo, porque também há vida ... 
Sou isso, enfim ...  
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor. 

Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.  
É um universo barato.