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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

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Poemas de Ironia e Má-Língua - Cristino Cortes

 

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Editora: Calçada das Letras, Prefácio: Annabela Rita, Capa: Henrique Ribeiro

 

     "Poeta de escrita consolidada, Cristino Cortes presenteia-nos desta vez com a sua verve de sagaz observador do quotidiano poético, à Cesário. E, como Cesário, deixa a ironia soltar-se e revelar o que aos olhos de um leigo literário seria o banalíssimo dia a dia, mas que o seu olhar poético converte em temas de poesia. Este é um livro que entronca nos poemas satíricos medievais sejam de escárnio, sejam de maldizer. Que se revê nas “cousas de folgar e gentilezas” do Cancioneiro Geral. E, por aí fora, até aos nossos dias na corrente satírica da lírica portuguesa. E ali, ao dealbar do século XX, vamos parar inevitavelmente devido ao título provocatório do livro entroncado sem dúvida na provocação literário-dramática de Almada Negreiros e do seu Manifesto, PIM!

     O livro divide-se em três partes a que o autor chamou “Observações”, “Imaginações” e “Teorias e Homenagens”. Na primeira parte assistimos ao desfile de factos diários, como diz o título, observações em circunstâncias diversas desde o estado do tempo a abrir, à viagem de metro/autocarro, ao almoço, à espera no consultório, enfim, qualquer hora do dia serve ao poeta para ironizar observando o real quotidiano. Tudo é motivo poético; tudo é razão para o poeta organizar umas palavras e dar-nos belos quadros e alguns bem expressivos. Exemplifiquemos: o filme de sábado na TV atrasado que permite uma boa sesta, a viagem matinal no autocarro, a aparição surpresa da Musa (poema longo onde o sujeito poético se espraia desde o início da observação – atração formal à primeira vista – até à separação). As formas sedutoras da sereia prendem o olhar e faz-nos acompanhar a proposta de visita: as formas corpóreas, o vestuário, os trejeitos tudo que a torna uma deusa. E assim se fez o poema. Ou vai fazendo: “É o que faço, estou a fazer, em boa verdade já fiz.” (p. 17) Parece que o espanto foi tal que deixou o sujeito poético meio grogue. Até porque “O poema não tem qualquer exigência / - se é que ficou feito … como ela o merece e eu o quis.” (p.17) Enfim, depois da contemplação daquelas costas nuas, vem o desejo do poeta – mais arriscado que o de Cesário no “Deus lhe dê saúde” da regateira do “Bairro Moderno” – e mais altruísta: “Que os deuses a protejam, sortudo será o homem que a amar”.(p.17) Apontamentos de um novo amor relembrando a Bárbara Cativa camoniana.

     É pois este o tom desta primeira parte do livro. Há ainda o “Atestado … de não idade” onde o poeta brinca com as possibilidades de redação de um atestado médico não ao gosto do doente mas do doutor que diagnostica a pior de todas as doenças que alguém quer ouvir: velhice! “O que andou já não tem mais para andar”, (p. 23) (diz o poeta através da sabedoria popular. São aliás os dit(ad)os populares que servem muitas vezes para confirmar a ironia literária que o autor vai destilando ao cair dos versos: “Passou já o meio do mês e ainda não abri falência. / Isto é caso raro, algum burro irá cair da ponte. / Não deitemos foguetes antes da festa, …” (P.25) E, quase a terminar esta primeira parte, a salvação poética do autor através da observação da mesa vizinha no restaurante: alguém ria a bandeiras despregadas qual cascata de som em si próprio sem querer enrolado …”(p. 28) Era o riso cantante e alegre de uma rapariga cujo parceiro de mesa não apreciava da mesma maneira. No entanto o sujeito poético, depois de eles saírem e numa segunda composição, fica a divagar e a cogitar se aquele sorriso, riso ou o que quer que seja, corresponderia a outras performances da rapariga noutros domínios menos confessáveis.  E aí o maldizer entra no domínio do escárnio sexual afirmando “se em amar / Ela assim fosse, em vez de um precisaria de dois!” (p.29) o que faz lembrar aquelas eróticas cantigas medievais. O que seguiu só foi dado ao poeta adivinhar, mas lá que o dia ficou salvo, ficou: “Salvou-me visivelmente o dia e eu muito lho agradeço.”(29) E, a completar, o poema Aparências feito de insinuações cujo incipit aponta a direção para onde o sujeito poético nos quer encaminhar: “Nem sempre mostram as mulheres a vontade que lhes mora / por baixo da roupa. (33). Bem, o resto o leitor imagine ou então … leia, ou se quiser seguir o conselho do magno poeta “mais vale experimentá-lo que julgá-lo.” Experientes conselhos dos dois poetas.

     Após as oportunas observações veem as imaginações. Estas servem ao poeta para vencer o tédio das reuniões e vemo-lo a imaginar qual será a mulher mais bela por ali. E qual Páris, di-lo explicitamente, começa a escolha. Mas esta é difícil pois aquilo que agrada numa desagrada noutra, levando-o a desejar ser Fausto para ele próprio poder formar o corpo perfeito. A verdade é que assim as reuniões não são uma seca e quem fica a ganhar é a poesia. Recupera dos mortos a sua Eurídice por virtude do muito imaginar. E ainda observador (será que este poema não é uma observação e assim deveria estar na primeira parte?) segue atrás dela num deambulismo cesárico e vai-a construindo na sua imaginação. Ela é quase um sonho impalpável tão vaporosa aparece aos olhos do poeta. E é exatamente essa visão etérea que o acompanha e lhe faz soltar o desejo com que termina o poema: “… se a forma encontrasse / de como ela, também eu do íman do chão me libertasse!” (p. 45). E a viagem continua por uma série mais de poemas sempre no tom jocoso à boa maneira escarninha portuguesa dizendo sem dizer, mas deixando sempre entrever o que o leitor quiser imaginar. A ironia utilizada nalguns destes poemas lembra-nos também o Canto da Cigarra do nosso Augusto Gil especialmente naquele “Instante de autoironia” ou mesmo os epigramas do nosso poeta naquele “Estender de roupa”.

     Mais haveria a dizer, mas terminemos com as teorias e homenagens. O caminho percorrido até aqui mantém-se na mesma linha de humor e ironia breve. A novidade, se acaso existe, baseia--se na explicitação dos mentores desta linha temática para o poeta. Destaca-se o poema A outra versão de Penélope onde o poeta divaga sobre a razão da sua fidelidade a Ulisses – “Fui-te fiel, sim /Oh Ulisses bem amado! / Mas pouco mérito há nessa minha constância/ Foi a majestade de rainha que me salvou/ E o respeito pela tua posição / Dos homens que me rondavam as saias”. (p. 63) Depois voltamos aos médicos e aos consultórios e quase lá nos encontramos com Bocage; passamos pela autoidentificação irónica; finalmente chegamos aos poetas e simbolicamente encontramos a vingança de Florbela pela filoginia do poeta (será?) e terminamos o percurso com o Fernando Pessoa a deambular pelas ruas de Lisboa perseguido pelas suas sombras. Teria sido assim desde o nascimento? Com toda a probabilidade.

     É deste modo o percurso irónico e satírico do autor pela realidade diária que o cerca mais ou menos automaticamente sim, mas sempre com um espírito de observação poderoso. Percurso feito na sua maioria em sonetos shakespearianos composição tão ao gosto do poeta."

 

José Manuel Monteiro

 

Recensão publicada na última "Praça Velha" (nº 34)

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