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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Memórias

     Às vezes, da penumbra da memória, surgiam-lhe recordações estagnadas há muito. Da infância chegavam-lhe nebulosas e difusas, perdidas, a maior parte, nos contrafortes do planalto guardense. Delas, algumas traziam-lhe a aldeia, pequena e invejosa, com a sua vida quotidiana orientada pelo ritmo dos trabalhos agrícolas, como era hábito, nesses idos anos quarenta do século vinte. Nesse ritmo entrara também ele, desde cedo, já que a necessidade de braços a isso obrigava. Não é que gostasse, mas a força da obrigação sobrepunha-se à débil vontade infantil. Dos trabalhos que lhe eram destinados gostava apenas daqueles que lhe concediam alguma liberdade, como guardar as vacas, no lameiro, perto da estrada que levava os sonhos para a cidade nos carros que passavam ou, então, entretinha-se a explorar os arredores quer o regato sorrateiro e sorna arrastando consigo pausadamente as águas mais retardatárias do último Inverno, quer os pequenos outeiros circundantes impregnados de mistérios vários que desejava desvendar, ora nas tocas mais recônditas onde os coelhos procuravam abrigo, ora nos ramos das árvores que os pássaros privilegiavam como local dos seus ninhos. Assim resgatava o cansaço do trabalho manual devaneando em viagens, logicamente imaginárias, até à cidade grande que via do alto da aldeia, empoleirado no barroco que presidia à laje do povo, centro das malhas do centeio, no início do Verão. (...)