Fernando Namora (1919-2019)
A memória das palavras
Retalhos da vida de um escritor
Quando se nomeia Fernando Namora, vem-nos imediatamente à memória o livro ou a série da RTP, “Retalhos da vida de um médico”. É indubitavelmente o livro mais conhecido do autor que tem muita mais produção escrita e até – faceta pouco conhecida – como pintor. Livro de memórias ligado ao exercício da medicina quer nas aldeias do sul de Portugal, quer mesmo na(s) cidade(s). Porém, o centro das narrativas memorialísticas é de facto a aldeia com as suas crendices, as suas superstições e o confronto entre a medicina e os frequentes charlatães que proliferavam por todo o país. Aproveita o narrador para denunciar também as condições infra-humanas em que se vivia na maior parte das aldeias da época de uma maneira irónica, de uma maneira ingénua, de uma maneira frustrada.
Fernando Namora nasceu em Condeixa-a-Nova, faz este ano 100 anos (19 de abril de 1919). Integrou-se desde cedo na chamada geração de 40 a que pertenceram Carlos de Oliveira, Mário Dionísio, Joaquim Namorado ou João José Cochofel. Estreou-se com um livro de poesia, “Relevos”. Funda com outros colegas a revista Altitude e participa nas atividades do Novo Cancioneiro publicando sistematicamente textos ligados ao neorrealismo da época. Apesar dessa ligação, construiu depois uma vertente mais pessoal, denunciando aquilo que se passava na sociedade com laivos de burlesco, de naturalismo e de existencialismo.
As suas obras, publicadas desde cedo, têm um percurso de evolução significativa sem deixar de ter uma ligação contínua. Assim, desde o romance Fogo na Noite Escura, que decorre em pleno ambiente universitário de Coimbra que integra personagens arrancadas à vida real e provenientes de várias faculdades são caraterizadas à maneira do neorrealismo pois, parecendo serem todos iguais como estudantes, acabam por denunciar um nivelamento falso ou artificial. Temos, nas obras seguintes, um ambiente rural cheio de vivacidade, mas também cheio de desníveis sociais gritantes. São exemplo disso as obras: Casa da Malta, A Noite e a Madrugada, O Trigo e o Joio e, o melhor exemplo, Retalhos da Vida de um Médico. Mais tarde quando vai para a cidade, marcado por uma solidão infinda e pelas vivências breves do quotidiano, entra na narrativa de cariz urbano como se poderá verificar em Cidade Solitária e Domingo à Tarde. Já na década de 70 passa por uma fase cosmopolita, marcada pelas viagens que faz por exemplo à Escandinávia e pela sua participação nos encontros de Genebra. Termina o seu percurso literário adentrando-se na ficção contemporânea com Rio Triste e Resposta a Matilde e publicando reflexões intimistas em Jornal sem Data.
A sua vida profissional – exercício de Medicina – desenrolou-se na província: Tinalhas, Monsanto (Cada manhã em Monsanto nasce o mundo.) e Pavia, fixando-se, em 1951, em Lisboa como Médico assistente do Instituto Português de Oncologia. Figura notável do mundo literário português viria a ser proposto para o Nobel da Literatura em 1981. Várias das suas obras foram transpostas para o cinema e para a rádio. A sua vida literária ficou assinalada, na parte final, pela polémica com Vergílio Ferreira. Luiz Pacheco publicou um panfleto onde acusava Fernando Namora de ter copiado frases de Vergílio Ferreira e a amizade entre os dois escritores que durava há quarenta anos acabou por ali. Disto dá notícia Vergílio Ferreira no seu Conta-Corrente: “Que livro pode ser mais importante do que a amizade entre dois homens? O Namora publicou um livro novo. Não mo mandou. Pela primeira vez em muitos anos. Reflexos da malandrice que lhe pregou o Luiz Pacheco e de que agora me julga responsável…”
O seu espólio literário e artístico pode ser apreciado na Casa Museu em Condeixa-a-Nova. Além de romancista, como referido acima, o autor escreveu vários livros de poesia. Fica um excerto de Profecia:
Não venham dizer-me
com frases adocicadas
(não venham que os não oiço)
que levo caminho errado,
que tenho os caminhos cerrados
à minha febre!
Hei-de gritar,
cair, sofrer
— eu sei.
Mas não quero ter outra lei,
outro fado, outro viver.
José Manuel Monteiro
[Texto publicado noa jornal "A Guarda", 04,04,2019]