Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Eduardo Lourenço

A memória das palavras

Eduardo Lourenço

“… namoro com tudo o que acho belo …”, Eduardo Lourenço

     95 anos são mais que uma vida, são uma quantidade enorme de experiência refletida numa série de publicações que foram pensando o mundo, a própria vida e, fugazmente, até a nossa cidade. São resmas de páginas intensas de um homem que viveu a vida a “pensar”. Literalmente.

     Desde 1923, ano em que nasceu na humilde e raiana aldeia de São Pedro de Rio Seco, o labirinto lourenciano foi-se construindo na humildade, na solidão e, quiçá, na saudade. É nesse livro emblemático que ainda hoje continua atual, o Labirinto da Saudade, publicado em 1978, que o seu pensamento emerge e nele inicia a sua visão sobre a portugalidade: o que somos face à Europa e ao mundo. O que fomos, o que somos, o que poderemos ser como povo? É necessário encontrar um caminho, uma identidade. E é, no contexto do pós 25 de abril, que Eduardo Lourenço (EL) inicia a sua meditação sobre essa identidade. Difícil de definir como povo, o português deve ser visto pela sua obra e essa revela um povo de poucos brandos costumes e de emigrantes. Ele próprio um emigrante que nunca saiu da pátria.

     Cedo sai da sua aldeia, primeiro para a Guarda e depois para Lisboa, porque o pai, feito militar para fugir às condicionantes de pobreza do Portugal de então, lhe pode oferecer uma educação libertadora. E, segundo o irmão, sendo um rapaz curioso, depressa começou a questionar-se e a questionar. A segunda fuga é para França, em 1949, com uma bolsa de estudos para aprofundar o conhecimento de Malebranche. Aí conhece o sorriso de Annie Salomon e se apaixona, talvez pelo seu sorriso, porque tudo o que é belo é para namorar (EL). Às suas custas e em dição de autor publica Heterodoxias (1949). É um livro marcante de posições: longe do salazarismo, mas também das ortodoxias comunistas. E entra nos domínios literários estudando exaustivamente Fernando Pessoa e afirmando que O Livro do Desassossego, é uma das obras que melhor reflete o ser português e os seus traumas a par de Os Lusíadas, da Mensagem e de A Arte de Ser Português de Pascoaes. Mas, no primeiro, está o Portugal presente e futuro, “Pela sua capacidade de mostrar todas as contradições do homem moderno, a dissolução do sujeito, a fragmentação do discurso, a crise da experiência moderna.” Sabendo que também o Padre António Vieira é um dos seus ícones preferidos o que pensará EL da tentativa de retirar a sua estátua de Lisboa? “Tirar a estátua do Vieira? Era só o que faltava! Ele que foi um génio literário ímpar, que teve uma visão cristã fora dos padrões da época e da nossa tradição, que percebeu o lado inumano da escravidão e que fez o possível, no seu ponto de vista, por pregar aos brancos dominadores que eles eram uns maus cristãos. Naquele tempo ninguém foi tão longe.”

     Hoje, aos 95 anos, o que pensa de Portugal e da nossa identidade? Hoje somos um país que foi levado pelo movimento europeu e mundial, que perdeu as matrizes cristãs e iluministas. No entanto, os traumas da nossa história mantêm-se latentes e podem emergir a qualquer momento. Mudámos porque a Europa mudou e “Como todo o Ocidente tornámo-nos todo o mundo e ninguém.”

     Para imortalizar o pensador, Miguel Gonçalves Mendes realizou um filme/documentário cujo nome é precisamente o livro de referência de EL, O Labirinto da Saudade. Inicialmente nos cinemas, durante uma semana, terá depois como destinatários os alunos de escolas e universidades portuguesas e lusófonas. É uma maneira de Portugal dar a conhecer um dos seus maiores pensadores e a sua realização partiu da iniciativa do General Luís Sequeira e do General Ramalho Eanes que convenceu EL a participar. E a Guarda?

José Manuel Monteiro

(* As citações foram retiradas da entrevista, dada por Eduardo Lourenço, ao jornal Observador, do dia 23.05.2018)

 

[Texto no jornal "A Guarda" de 31.05.2018]