Vieram pombas e sol, E de mistura com o sonho Posou tudo num telhado... Eu destas grades a ver Desconfiado
Depois Uma rapariga loura (era loura) num mirante estendeu roupa num cordel: roupa branca, remendada que se via que era de gente lavada, e só por isso aquecia...
E não foi preciso mais: Logo a alma Clareou por sua vez. Logo o coração parado Bateu a grande pancada Da vida com sol e pombas E roupa branca, lavada.
Mundo à
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora
Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.
Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida.
Mar! E é um aberto poema que ressoa No búzio do areal... Ah, quem pudesse ouvi-lo sem mais versos! Assim ouro, Assim azul, Assim salgado... Milagre horizontal Universal, Numa só palavra realizado.
Diário XI, Miguel Torga
[O já habitual passeio "turístico" a beber areia, ouvir o barulho obscuro do mar, o sal incorrupto da água, enfim, o pseudo-descanso estival.]
Tarde pintada Por não sei que pintor. Nunca vi tanta cor Tão colorida! Se é de morte ou de vida, Não é comigo. Eu, simplesmente, digo Que há fantasia Neste dia, Que o mundo me parece Vestido por ciganas adivinhas, E que gosto de o ver, e me apetece Ter folhas, como as vinhas.
Se puderes Sem angústia E sem pressa. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado, Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar e vendo O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças...
Nada a fazer amor, eu sou do bando Impermanente das aves friorentas; E nos galhos dos anos desbotando Já as folhas me ofuscam macilentas;
E vou com as andorinhas. Até quando? À vida breve não perguntes: cruentas Rugas me humilham. Não mais em estilo brando Ave estroina serei em mãos sedentas.
Pensa-me eterna que o eterno gera Quem na amada o conjura. Além, mais alto, Em ileso beiral, aí espera:
Andorinha indemne ao sobressalto Do tempo, núncia de perene primavera. Confia. Eu sou romântica. Não falto.