Amar a quem me aborrece, é ser humano com quem o não é comigo: aborrecer a quem me ama, é ser cruel com quem mo não merece: o ser humano é ser homem; o ser cruel é ser fera: logo aborrecer a quem nos ama, tanto mais dificultoso é, quanto mais repugnante à natureza. (P.e António Vieira, “Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma “)
A literatura, embora não devesse, também está sujeita a modas, a vagas de fundo. Os escritores que muitas vezes andam esquecidos, voltam à ribalta quando se faz uma edição das suas obras ou quando se assinala uma efeméride. Não que isto seja mau. O mau é que autores essenciais andem muito tempo arredados do grande público e só nessas ocasiões apareçam novamente. Vem isto a talho de foice pela reedição das obras completas do Padre António Vieira.
A publicidade, as campanhas de promoção vêm repor este “imperador da língua portuguesa” (no palavrar de Fernando Pessoa) no lugar que lhe compete em termos da literatura portuguesa. A sua prosa é sem dúvida o apogeu da nossa escrita e isto - lembremos - durante o século XVII. A sua arte do domínio da língua foi excelente e aquilo que ele foi capaz de fazer dizer à língua nunca mais ninguém o conseguiu com tamanha plenitude. Deveria ser um autor de leitura obrigatória no ensino secundário não limitado ao “Sermão de Santo António aos Peixes”, mas com mais dois ou três exemplos de argumentação. E se os nossos políticos lessem e assimilassem os seus textos oratórios não fariam discursos tão balofos e sem ideias, nem tão vazios de sentido. A sua grandeza é comprovada pelos testemunhos que lemos muitas vezes de autores que confessadamente se dizem ateus. José Saramago no seu amor à língua portuguesa (o mesmo não se poderá dizer em relação a Portugal) afirmou sobre o Padre Vieira: “A língua portuguesa nunca foi mais bela que quando a escreveu esse jesuíta.” E outro confesso ateu e grande poeta do século XX, Ary dos Santos, tem a melhor declamação do “Sermão de Santo António aos Peixes” de todos os tempos. Servem estes dois exemplos para corroborar o valor unânime à volta desta grande figura das nossas letras e o maior português do século XVII. A sua figura é ímpar pois além de “sermoeiro” reconhecido internacionalmente (recorde-se a sua fama em Roma) com os dotes excelsos de maior orador da época, foi também ecologista, pacifista, embaixador de Portugal, político, economista e defensor dos índios entre outros atributos e atividades. Mas o que atrai mais na sua figura é a verticalidade que sempre mostrou perante os poderosos e que lhe valeu a passagem pelos cárceres da Inquisição, por acaso ainda bem, pois lhe permitiu rever os seus sermões e prepará-los para a publicação posterior. A atualidade dos seus escritos é gritante. Veja-se este exemplo: “O maior jugo de um reino, a mais pesada carga de uma república, são os imoderados impostos. Se queremos que sejam leves, se queremos que sejam suaves, repartam-se por todos. Não há tributo mais pesado que o da morte, e contudo todos o pagam, e ninguém se queixa; porque é tributo de todos.” (Sermão de Santo António, Lisboa, na Igreja das Chagas). Ou este: A mais poderosa inclinação, e o maior apetite do homem, é desejar ser. […] Não está o erro em desejarem os homens ser; mas está em não desejarem ser o que importa. (Sermão de Todos os Santos, no Convento de Odivelas).
Para José Eduardo Franco, diretor da edição acima referida com Pedro Calafate, o Padre António Vieira é «…um homem atual que lutou contra a escravatura pela reforma da Inquisição um crítico das más práticas políticas da divisão da sociedade entre cidadãos de primeira e de segunda defensor da abolição da diferença de direitos dos chamados cristãos novos e cristãos velhos capaz de fazer um diagnóstico de Portugal e da mentalidade portuguesa do seu tempo e que dizia que a verdadeira fidalguia estava na ação. Ele faz muito sentido neste tempo de crise em que vivemos.»
Gonçalves Monteiro
[texto publicado no jornal "A Guarda" - 16.05.2013 que também pode ser lido aqui.]
"A Terceira miséria é esta, a de hoje. A de quem já não ouve nem pergunta. A de quem não recorda" Hélia Correia, "A Terceira Miséria"
Os prémios literários servem para quê? Para fazer conhecer mais e melhor os escritores ou para os escritores serem conhecidos e lidos? Quantos Nobel da literatura foram descobertos depois do prémio e quanto tempo durou a fama? Quantos se tornaram de projeção mundial se não o eram já antes?
Vêm estas perguntas retóricas a propósito da atribuição de dois prémios literários a uma escritora do nosso país pouco conhecida do grande público, mas com uma obra importante no panorama da literatura nacional. A escritora Hélia Correia foi, numa só semana, distinguida com dois prémios: um pelo conjunto da sua obra, outro pelo seu livro de poesia “A Terceira Miséria”. O primeiro, com o nome de Vergílio Ferreira, foi outorgado pela Universidade de Évora ao conjunto da obra desta escritora; o segundo, Casino da Póvoa”, foi divulgado esta quinta-feira (21.02) no início desse acontecimento literário que cada ano ganha mais interesse e onde acorrem alguns dos principais nomes das letras e que é o “Correntes d’Escritas”. O interessante é que um foi atribuído pela obra de narrativa e ensaio e o outro por uma obra de poesia.
Hélia Correia é uma professora de Português do ensino secundário, formada em Filologia Românica e que sempre admitiu ter uma predileção especial pela poesia. No entanto, foi a sua obra romanesca que a tornou mais conhecida e representa a geração de 1980 através dos contos e novelas que estão cheios de prosa poética. É uma escritora que utiliza a linearidade narrativa como Gabriel Garcia Marquez ou como a nossa Agustina. Está pois inserida na modernidade narrativa e acompanha a literatura atual embora um dos temas mais recorrentes seja o da ascensão social em meio rural. A sua escrita aproxima-se bastante de um discurso oral em busca do poder encantatório da palavra e próxima da técnica do conto popular. O primeiro livro, “O separar das águas”, é de poesia, mas foi a sua novela Montedemo que a tornou mais conhecida e que realizou de algum modo a sua atração pelo teatro uma vez que foi levada à cena pelo grupo de teatro O Bando. Foi essa sua paixão pelo teatro e pela Grécia antiga que a levaram a participar na representação de Édipo Rei, na Comuna. É o seu amor à Grécia que a leva a escrever os poemas do livro agora premiado “A Terceira Miséria” e ela própria fez questão de o referir ao afirmar que o povo grego está a sofrer uma pressão inaceitável assim como o nosso país. O livro é “uma mensagem muito forte: quase um pedido de socorro, um grito” a reivindicar o direito à liberdade económica. Comparou mesmo o seu livro às canções de intervenção de José Mário Branco. É o regresso à poesia grega e à função didática que Aristóteles defendia para a literatura.
Já agora e aproveitando a referência ao Correntes d’Escritas, de referir a intervenção do escritor Helder Macedo que, na linha de coerência do seu pensamento, elogiou o papel e a persistência da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim ao organizar esta iniciativa, especialmente perante a situação de contenção que se vive em relação à cultura. “Somos um país que é perdulário como só os países pobres como nós o são e onde há as maiores fortunas e simultaneamente as maiores desigualdades”, lamentou o escritor e criticou o progressivo desinvestimento governamental na cultura, mesmo quando ela é sempre “a coisa mais barata”, e que maior relevo dá ao nosso país, também a nível internacional. Lamentou ainda que Portugal não saiba reconhecer pessoas da área da cultura que são conhecidos no estrangeiro e que podiam dar um contributo grande ao país adiantando que se segue uma política cultural de pedintes porque quer exportar cultura mas não tem bases para o fazer. Nada de muito novo, mas sabe sempre bem ouvi-lo da boca de quem tem autoridade moral e cultural para o fazer.
Como todos os anos em Outubro caem as folhas das árvores e caem os famosos prémios Nobel. Como todos os anos há surpresas. Em relação à literatura, apostava-se forte num japonês e vence um chinês. Coisas do comité. Perfilava-se a vitória de HaruKi Murakami em quem apostavam as agências internacionais ligadas ao sector e eis que vence Mo Yan. Sinceramente tinha ouvido o seu nome de passagem uma ou duas vezes, mas não me tinha demorado na sua obra. Ao menos esse mérito há que reconhecer aos prémios: fazer-nos conhecer e ler determinados autores pouco divulgados em termos do grande público.
Quem é então este senhor quase desconhecido por cá? Nasceu em 1955, na China rural que retrata nos seus romances e a sua escrita enraíza-se no chamado “realismo mágico” de Garcia Marquez e outras correntes ocidentais. É originário do leste da China, província de Shandong, onde nasceu no seio de uma família pobre tendo abandonado os estudos durante a Revolução Cultural. Tornou-se camponês e entrou no Exército aos 20 anos. Começou por escrever um conto, em 1981, enquanto ainda era soldado e seis anos mais tarde publicou a primeira obra de sucesso “Red Sorghum” que foi adaptado ao cinema. Em 2011 foi galardoado com o Prémio Mao Dun, o mais importante do país, sendo também eleito vice-presidente dos escritores da China. O seu mais recente romance, "Frog", aborda um tema delicado no seu país: a prática de abortos forçados devido à drástica política de controlo da natalidade imposta há três décadas sob a fórmula "um casal, um filho". No nosso país só foi editado até ao momento um livro, em 2007, “Peito Grande, ancas largas”, na editora Ulisseia e traduzido por João Martins.
Mo Yan (significa em chinês “não fale”), que é o pseudónimo de Guan Moye, considera que "um escritor deve enterrar os seus pensamentos e transmiti-los através dos personagens dos seus romances". Confessa-se admirador de Faulkner e Garcia Marquez e disse há pouco tempo que na China como “em todos os países há certas restrições à escrita”. Em declarações públicas diz ter ficado contente com o Prémio e declarou: «Vou concentrar-me na criação de novas obras. Quero aplicar-me mais para agradecer a todos». É um dos escritores chineses contemporâneos mais publicados fora da China, nomeadamente no Japão, França, Reino Unido, Alemanha e Estados Unidos.
Aguardemos a publicação de obras do autor em português para nos podermos pronunciar criticamente sobre elas.
2. Penumbra
Saiu recentemente, em edição de autor, - que isto de publicar poesia em editoras foi chão que já deu uvas - mais um livro do poeta Manuel A. Domingos. Natural de Manteigas, fez os estudos secundários e superiores aqui na Guarda, tendo enveredado pelo ensino e encontrando-se neste momento desempregado, vítima, também ele, dos drásticos e irracionais cortes na educação. No seu caso até pode ser útil, se é que nesta situação há algo de útil, pois oferece-lhe a oportunidade de continuar a escrever e publicar poesia. Oxalá! Este é o terceiro livro de poesia, depois de “Mapa”(2008) e “Teorias”(2011), e que vem reforçar o lugar adquirido por mérito próprio no panorama da actual poesia portuguesa. Tem também colaborado em algumas revistas e feito traduções de autores estrangeiros. Ele próprio define a sua poesia como irónica e por vezes até cínica. É, de facto, uma ironia da própria vida a que sobressai de alguns dos seus poemas. Já o escrevi uma vez e este livro vem confirmar que se trata de uma poetização do real quotidiano. Vê a beleza poética das coisas simples convertidas em motivo para a partilha com os outros. Olha e converte. “Há livros na estante / que nunca li / Esperam a sua vez / a ganhar pó // Olho para ti e não sei / que novidade encontro / sempre no teu olhar.” Ou então: “Hoje deu-me / para a melancolia / ficar assombrado / com a realidade das coisas.”
Mas o melhor é ler mesmo a sua poesia e comprovar que se trata de um bom poeta.
3. Manuel António Pina
O texto terminava acima, mas a vida, fértil em surpresas, deu-nos na passada sexta-feira, a súbita notícia da morte deste grande poeta dos nossos dias, natural do Sabugal e que, nos últimos anos, esteve bastante ligado à Guarda, não só pela homenagem que a cidade lhe fez, mas também pelo prémio literário a que deu o nome. Era, hoje, no mundo das letras e do jornalismo, um nome incontornável. Poeta de obra feita e divulgada por esse mundo fora, foi também um cronista dos mais exímios deixando os seus belos e objectivos textos dispersos em vários jornais. Perde-se um grande poeta e a Guarda perde um bom amigo e divulgador do seu nome. Estes verbos no pretérito perfeito são enganadores, pois ele está entre nós e as suas palavras torná-lo-ão sempre presente cada vez que lermos um texto seu. Uma vez disse: “Eu sei lá para quem é que eu escrevo.” a propósito dos seus livros infantis, mas nós hoje sabemos que ele escreveu para nós o lermos, para lhe bebermos o génio da luta que habitava nele e para continuarmos os seus poemas na execução das palavras na vida. Repousa nos teus versos, já que nos deixas o projecto de “Como se desenha uma casa”, nos deixas em “Um país de pessoas de pernas para o ar!”, no entanto, “Ainda não é o fim nem o princípio do mundo calma é apenas um pouco tarde”!
Há dias o jornal "A Guarda", pela voz do amigo Padre Francisco Barbeira, pediu-me umas palavras sobre o Dia Mundial da Poesia. Disse-as, mas claro, se fosse hoje di-las-ia de outra maneira. Para registo futuro podem ser lidas aqui. Espero que façam alguém ler um pouco de poesia e ....
Há dias atrás, ao arrumar uns livros, dei com um pequeno opúsculo intitulado “Em defesa do Poeta Árquias”. E lembrei-me do que aprendi de humanidade, na Faculdade de Letras de Lisboa, da sua tradutora, Dra. Mª Isabel Rebelo Gonçalves. Isso mesmo, de humanidade, a humanitas latina que englobava todas as capacidades que um homem deveria ter para ser verdadeiro cidadão romano e entre as quais se contava a cultura. Não é que os romanos – homens do prático – dessem muito valor às letras e às artes da escrita. Despertaram para esse valor quando conquistaram a Grécia e, a partir daí, os nobres romanos mandavam para lá ou para outros focos da sabedoria grega, como Alexandria, os seus filhos aprender. Ora um dos produtos dessa filosofia, desse amor à sabedoria, foi precisamente o autor do livrinho citado acima, Marco Túlio Cícero, orador, político, escritor, jurista dos maiores que Roma conheceu.Este discurso judicial – em Latim Pro Archia – serviu, ao seu autor, para fazer em público a apologia daquilo que ele mesmo fazia: a arte de escrever. Por isso, quando em 62 a.c., aceitou defender em tribunal o direito à cidadania romana de Aulo Licínio Árquias, cidadão grego e um poeta menor, fez história no mundo ocidental. Cícero, não só aproveitou a ocasião para defender o direito à cidadania romana de todos os que a desejassem, mas também para fazer, perante os práticos romanos, a apologia e louvor daqueles que se dedicavam às letras. Foi a primeira vez que num tribunal público se defendeu o direito à cultura e se “exibiu” esta como uma qualidade merecedora de distinção. (Assim o defendeu o mestre filólogo, Francisco Rebelo Gonçalves, que afirmou a propósito: «pela primeira vez se ouviu num tribunal romano um louvor deste género e, pela primeira vez também, pôde um romano confessar em público o orgulho de ser escritor»). Árquias era protegido pela família dos Luculos e tinha escrito alguns poemas em grego sobre esta família e sobre outros assuntos. Mas, por intrigas políticas, é acusado por Grátio de não ser cidadão romano. Cícero prova que ele é cidadão romano de facto e recorre a argumentos extra causa para provar que o poeta merece a cidadania romana, não só porque vivia há muitos anos em território romano, mas especialmente porque se dedicava às letras e isso, segundo ele, era um motivo suficiente para lhe ser atribuída a cidadania. Ao fazer o elogio das letras, explica que estas dignificam as pessoas que as cultivam e relembra os nomes de antigos romanos que se destacaram pelo seu desempenho, como os Cipiões, Catão, etc.. E que houve grandes romanos que, não tendo talento para as cultivar, as admiraram por aquilo que oferecem já que o estudo das letras é uma ocupação das mais nobres. Depois vai argumentando que a cultura não pode ter fronteiras e se muitos generais concediam prémios a poetas, ainda que medíocres, era porque o desejo de glória afecta todos o seres humanos inclusive o próprio autor. Este desejo é um meio seguro de alcançar a imortalidade que é a única recompensa digna de grandes feitos preferível a estátuas e monumentos mais facilmente perecíveis. Apontando o seu exemplo afirma: “Se desde a juventude me não tivesse convencido com as lições de muitos e com muitas leituras de que nada se deve pertinazmente ambicionar na vida do que glória e honra e de que para as alcançar se deve ter em pouca conta a tortura física e quaisquer outros riscos, nunca eu teria arrostado tantas e tamanhas lutas e estes diários ataques de homens tão corruptos. (…) estes estudos nutrem a juventude, distraem a velhice, realçam os momentos felizes, propiciam refúgio e conforto nos infelizes, deleitam-nos em casa, não nos estorvam na rua, dormem connosco, connosco viajam, acompanham-nos no campo. E mesmo que nós próprios não conseguíssemos entender, nem apreciássemos tais estudos, deveríamos pelo menos admirá-los.” (O texto é mais saboroso no original porque, como se costuma dizer, o tradutor é um traidor, contudo hoje quem estuda Latim nas escolas? Não será também por isso que há tanta iliteracia?)
Perante tal argumentação o tribunal deu a cidadania romana ao poeta que não seria conhecido hoje se não fosse o talento de Cícero. Era bom que o estudo do Latim e dos escritores clássicos voltasse às salas de aula pois muito haveria a aprender com eles. Se algumas figuras da nossa praça conhecessem o “Pro Archia”, não fariam tão triste figura quando querem amesquinhar aqueles que se dedicam a fazer com que as pessoas tenham acesso a essa mesma cultura. Uma cidade que, como a nossa, tem um programa cultural, ao longo de todo o ano, devia orgulhar-se disso e devia “usar” essa prerrogativa para atrair visitantes, para mostrar que não tem medo de se medir com os grandes centros culturais do país. Se soubéssemos aproveitar este facto, seríamos cidadãos livres capazes de fazer inveja ao grande cidadão romano Cícero que passou a vida a lutar pela liberdade e acabou por ser vítima daqueles que não aceitavam a liberdade como norma de vida. Ou, como dizia o pensador Agostinho da Silva, “o homem para ser completo e realizável precisa de liberdade e de livre acesso à cultura.”
* M. Túlio Cícero,”Em defesa do poeta Árquias”, Editorial Inquérito, Lisboa
[Texto publicado no jornal "A Guarda" de 20.01.2011]
A literatura recolhe muitos temas da vida real e das festas quer religiosas, quer profanas. Entre as festas religiosas o Natal é uma das que mais vezes foi glosada nos textos literários desde que a literatura se iniciou. Já alguns autores fizeram a recolha desses textos e enumeraram os principais escritores a glosar o tema. Entre os mais citados estão com certeza Camões com vários sonetos e outros tipos de poemas dedicados a esta festa e, no século XX, nomes grandes da nossa literatura também o trataram em composições ou textos, desde logo, Fernando Pessoa, Miguel Torga, José Régio, David Mourão-Ferreira entre tantos outros que poderiam ser citados. Como há muitos textos disponíveis para consulta, vou falar do tema em três escritores ligados à Guarda.
1. Das várias obras de Augusto Gil, relembro e restrinjo-me aqui a Alba Plena, livro de poemas em que faz o percurso de vida de Nossa Senhora e, por arrasto, de seu Filho. Um dos primeiros poemas “Natividade” (A natividade da Virgem é a última noite do mundo antigo. Abade Lemman – frase que surge como pórtico do livro.) é o percurso a quatro andamentos do nascimento da Virgem: o primeiro andamento é a história do lobo que na sua toca, no Líbano, sente o instinto selvagem de matar, mas inexplicavelmente, perante uma pequena ovelha indefesa, não é capaz de saciar os seus apetites e interroga-se: “que milagroso bem me tornou bom / – a mim que sou um lobo e tenho fome?!...; no segundo andamento, um mercador, bom e simples, que tantas vezes passara em caravana por certas terras, vê o cume de um monte, que sempre estivera coberto de neve, reluzente de uma luz estranha e interroga-se: « … Senhor! Senhor! / mudou o céu e a terra e tudo o que há... / Que doce aviso é este? O que será?!...»; no terceiro andamento, um romano exilado que nunca encontrara a paz em terra estranha, sente de repente uma súbita sensação de calma e pergunta “À terra, ao mar, ao céu, a tudo o que há: / “Que facto estranho, admirativo, ingente / se passa neste instante? O que será?!...”; e, no quarto andamento, Joaquim, velho profeta, cansado da vida, pede a Deus que lhe dê o descanso e, finalmente, encontra-o num berço de criança juntamente com as respostas às questões anteriores: “… Naquela tarde, e àquela mesma hora, / Nascia, em Nazaré, Nossa Senhora.” É, pois, uma “epopeia” ao nascimento de Nossa Senhora o que Augusto Gil faz neste poema a quatro tempos, ao Natal que possibilitou o posterior Natal do seu Filho. Não é uma maneira de celebrar o nascimento de Cristo, exaltando e alongando a história do nascimento da sua Santa Mãe? Que melhor elogio se podia esperar? E, nos poemas seguintes, vai construindo o “Evangelho de Nossa Senhora”, percorrendo as diversas fases da Sua vida: a infância, juventude, o casamento, a Anunciação, com a Avé Maria, a Visitação, com o seu Magnificat (“ A página mais linda e a maior / que a Bíblia tem e que a igreja reza...”). E, neste percurso, aparece, então, um poema intitulado “Natal”, bastante conhecido e que se baseia num presépio de ceramista (“Este Natal de Jesus / Há dois séculos que o fez, / Com barro mole, um oleiro. / Verdade não a traduz; / Mas, por ser tão português / - É para nós verdadeiro …”) E ali vemos depois desfilar as figuras tradicionais do presépio com realce para a Sagrada Família, para o enlevo com que São José e Nossa Senhora contemplam o Menino. Seguem-se os anjos e os Reis Magos e um desfile de pobrezinhos: dois cegos, um coxo a atirar as muletas fora, uma pastora, um petiz a fazer palhaçadas. E tudo isto porque: “É que estão próximas já, / É que já estão vizinhas / As tardinhas comoventes / Em que às turbas pregará / O amigo das criancinhas / Dos corações inocentes ….” Desta maneira o poeta não retira protagonismo à figura central do livro e faz uma releitura do presépio aportuguesando-o com algumas figuras humanamente reais. (Porque aparecerá o coxo?)
2. A figura do petiz, na descrição do poema “Natal”, trouxe-me à memória outro escritor da Guarda, nascido lá para a raia de Espanha, em terra de contrabandistas. Logicamente, refiro-me a Nuno de Montemor que, no seu livro de contos Encantos Meus, tem um cheio de ternura e humanidade, como aliás em toda a sua obra, ou não fosse ele o fundador do nosso Lactário Dr. Proença. O conto intitula-se “João Manuel” e é a história de um rapazinho que fica órfão de pais muito novo e que a figura tutelar do Padre Domingos entrega aos cuidados de duas tias provincianas que nunca tinham saído de Orjais. Ora estas marafonas, mal se apanham administradoras da fortuna do pobre rapaz, entregam-se a uma vida menos aconselhável e vão negando ao menino aquilo que ele queria dar aos seus amigos da aldeia: carradas de brinquedos. Assim lho promete, mas não pode cumprir porque as tias preferem gastar dinheiro nas comezainas e vestimentas a satisfazer os seus desejos. Quando na altura do Natal vêm à aldeia, João Manuel liberta-se da tutela pressionante das parentas e faz uma série de travessuras que culminam no seu desaparecimento com medo do castigo. Na noite de Natal, toda a gente o procura sem descanso até que desistem de o procurar. Na manhã seguinte, quando o criado da quinta vai à corte deitar de comer às vacas, dá com o petiz escondido na manjedoura, onde se tinha deixado dormir aquecido pelo bafo das mesmas e aos seus gritos de alegria, junta-se o povo e todos contemplam a cena digna do presépio. Uma das tias entra, “enfurecida e de mão alçada, a perguntar alto: - Quem julga que é o menino, para fazer todo este rebuliço?! E o João Manuel, ao ver-se na manjedoura, entre palhas e vacas mansas, respondeu sem atinar com mais desculpas:- Eu sou o menino Jesus!” É ou não uma história de Natal? Desligada da vida? Idealista? Cheia de humanismo, escrita por alguém que toda a vida pregou Cristo compadecido pelos mais fracos e desprotegidos: “os pobrezinhos de Cristo”. Claro que, na sua obra, há outras referências ao Natal e ao presépio, mas uma das grandes lições da sua obra e da sua vida é precisamente a da grandeza dos humildes que sabem dar melhores lições que os grandes e poderosos. É o escritor eivado do “Amor de Deus e da Terra”.
3. Termino com a transcrição dum soneto do poeta Cristino Cortes, nosso contemporâneo e conterrâneo (Fiães, Trancoso), que glosou assim o tema do Natal:
POEMA DE NATAL
Nos arredores da cidade tenho uma lareira.
Acendo-a e creio que nem seria Natal
Sem a chama avermelhada dum monte de madeira
E o calor de dentro de cada um íntimo sinal
Esqueçamos o fumo o acto de fumegar e o cheiro
E a barriga aconchegada o que nos vai custar;
O menino nasceu, há tempo da Páscoa chegar
Um tempo de repouso um riso ao mudar-lhe o cueiro
Nem haveria Natal sem frio e sol e quem me dera
Voltar a um coração de criança neste dia;
Acreditar no que é próprio natural a alegria
De quem nada receia tudo sabe e tudo espera...
Assim penso fixando e remexendo as brasas da lareira.
É Natal, sim, é Natal desta e de muita outra maneira.
(“Em Lisboa pelo Natal …”, Editora Ulmeiro)
Haveria muito mais a dizer de autores locais ou nacionais, mas … boas leituras e BOM NATAL!
[Texto publicado no jornal "A Guarda", 23.12.2010
E até mais tarde. Segue-se pequena pausa reflexiva.]
Junho foi um mês que nos roubou algumas figuras das letras e de proa da literatura portuguesa. Cada um à sua maneira marcou a época com as suas obras e as suas ideias sobre o modo de entender as coisas e de ver as pessoas e o mundo.
1. António Manuel Couto Viana
O poeta, contista, ensaísta, actor, dramaturgo, encenador e figurinista tinha 87 anos, nasceu em Viana do Castelo e faleceu no passado dia 8 de Junho. Fez os seus estudos em Viana do Castelo, Braga e Lisboa e desde cedo revelou o seu interesse para e pelo teatro, começando por colaborar no Teatro Estúdio do Salitre como actor, cenógrafo e encenador. Dirigiu outros teatros e a Companhia Nacional de Teatro. Foi actor, encenador e mestre de arte de dizer e de representar, colaborando também com a Televisão para a qual fez alguns programas. Estreou-se em 1948 na poesia com o título Avestruz Lírico integrando-se no grupo Távola Redonda e colaborando na revista Graal. Com a sua poesia integrou-se no grupo de autores que se opôs ao neo-realismo através da opção pelo culto do passado, da paisagem e dos amores “ingénuos”. Como disse José Jorge Letria por alturas da sua morte foi um homem «cioso do detalhe, que trabalhou a memória da poesia e foi um poeta de grande mérito que voltou a ter destaque na última década e meia, porque o seu percurso foi sempre discreto por razões ideológicas, por ser um homem de direita». Os seus poemas estão traduzidos em espanhol e em inglês e recebeu várias distinções pela sua obra: Prémio Antero de Quental, Prémio Nacional de Poesia, Prémio Fundação Oriente, Prémio Academia das Ciências de Lisboa e Prémio de Poesia Luso-Galaica. Nos últimos anos, voltou à ribalta das letras com dois livros de contos, “Os Despautérios do Padre Libório” e “Que é que eu Tenho Maria Arnalda?” e o livro de poemas “Ainda não”.
2. João Aguiar
Faleceu no dia 3 de Junho, em Lisboa, este jornalista e escritor ligado à recuperação do romance histórico deixando-nos vários romances, entre outros, A Voz dos Deuses, O Homem Sem Nome, Os Comedores de Pérolas, A Catedral Verde ou O Jardim das Delícias. Frequentou os Cursos Superiores de Direito e Filosofia em Lisboa e tirou Jornalismo em Bruxelas, onde deitou mão a vários trabalhos, como lavar escadas. A ânsia da escrita “nasceu-lhe” na infância quando a mãe o ensinou a ler para o manter sossegado na cama devido a doença. No entanto, só aos quarenta anos publicou o primeiro romance, “A voz dos deuses”, ficção centrada na figura de Viriato. Seguiram-se outras obras sobre figuras históricas como Sertório, passando mais tarde a localizar as suas narrativas em Macau, caso de “Os comedores de pérolas” e “O dragão de fumo”. Também a literatura infanto-juvenil lhe despertou a atenção, não só pela colaboração na tradução/adaptação da série “Rua Sésamo”, como também pela criação das séries “Sebastião e os Mundos Secretos” e o “Bando dos Quatro”. A paixão pelo jornalismo sempre o acompanhou e nela nasceu provavelmente o gosto pela narrativa histórica e pela sua escrita corrente e fluida. Na sua autobiografia e utilizando a ironia que usava tão bem, escreveu: “A minha vida não dava um livro, e ainda bem. Em compensação, o facto de os meus livros darem uma vida — boa ou má, não importa para o caso - , esse facto devo-o, em grande parte, aos momentos meus de não-glória.” (“Jornal de Letras” em 2005) O Presidente da Sociedade Portuguesa de Autores ao lembrar a sua morte referiu: “Trata-se de uma grande perda no plano literário e cultural. O João Aguiar era um grande escritor, dos mais importantes das últimas décadas em Portugal, com uma obra reconhecida pela crítica e pelo público, era um escritor profissional, com muitas edições dos vários livros que publicou, era um escritor de êxito. Era um homem de uma grande exigência, uma grande capacidade de trabalho, de uma grande seriedade intelectual e também um homem de princípios muito fortes e também com uma ligação muito forte e intensa com Portugal, a sua memória e os seus valores”. Os seus livros encontram-se traduzidos em Espanha, Itália, Alemanha e na Bulgária.
3. José Saramago
A 18 de Junho faleceu, em Lanzarote, este escritor, argumentista, jornalista, dramaturgo, contista, romancista e poeta português. Conhecido do grande público a partir da década de oitenta deixou o jornalismo por essa altura para se dedicar em exclusividade à escrita. Cultivou a narrativa com incursões várias pela história sob o ponto de vista da ideologia que sempre professou: a força do povo. Nesta linha, o seu mais célebre romance “O Memorial do Convento”, destaca como personagem colectiva o povo trabalhador, requisitado à força para as obras de construção do convento de Mafra e sem a qual ela não teria sido possível. Claro que a visão saramaguiana da História é um pouco redutora, eivada de uma ironia constante, especialmente no que diz respeito à importância e ao papel da Igreja. Essa atitude valeu-lhe o confronto aberto com a mesma Igreja e com outras instituições eivadas de valores ligados ao personalismo cristão. Mas como referiu o Padre José Tolentino, diretor do Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura da Conferência Episcopal Portuguesa: “Sem dúvida, a acusação que Saramago faz ao cristianismo é muito mais ao institucional, ao poder histórico, do que propriamente ao cristianimo messiânico de Jesus de Nazaré” Polémicas à parte, Saramago foi um pioneiro no mundo da escrita e esse papel é incontestável: criou um estilo próprio que o levou a ser conhecido no mundo inteiro e que lhe valeu a atribuição do Prémio Camões, em 1995, e do Prémio Nobel da Literatura, em 1998. A sua morte é uma perda para a cultura portuguesa porque como lembra Carlos Reis: “Com José Saramago” desaparece não apenas um grande escritor português, mas sobretudo um enorme escritor universal”. Já Eduardo Lourenço afirma que Saramago “imaginou uma arquitectura romanesca que é uma espécie de inversão de signo da tradição mais canónica das nossas letras, construiu um mundo ao revés, que era, para ele, o mundo às direitas, reviu a história de Portugal e da Península – a história dos árabes que poderíamos ter sido –, e reviu a história da modernidade numa espécie de apocalipse.” (Público, 18.06.2010) Os seus livros estão praticamente traduzidos em todo o mundo.