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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Chove?... Nenhuma chuva cai...

 

Chove?... Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?

Onde é que chove, que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te, e não posso,
Ó céu azul, chamar-te meu...

E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...

E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro... E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.

Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro em mim.
Se escuto, alguém dentro em mim ouve
A chuva, como a voz de um fim ...

Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior,
Ó céu mais útil que o meu pranto?

 

 

1-12-1914

Fernando Pessoa

Do vale à montanha

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por casas, por prados,

Por quinta e por fonte,

Caminhais aliados.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por penhascos pretos,

Atrás e defronte,

Caminhais secretos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por plainos desertos

Sem ter horizontes,

Caminhais libertos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte,

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por ínvios caminhos,

Por rios sem ponte,

Caminhais sozinhos.

 

Do vale à montanha,

Da montanha ao monte

Cavalo de sombra,

Cavaleiro monge,

Por quanto é sem fim,

Sem ninguém que o conte,

Caminhais em mim.

 

 

24-10-1932

Fernando Pessoa.

O CARRO DE PAU

 

O carro de pau

Que bebé deixou...

Bebé já morreu

O carro ficou...

 

O carro de pau

Tombado de lado...

Depois do enterro

Foi ali achado...

 

Guardaram o carro

Guardaram bebé.

A vida e os brinquedos

Cada um é o que é.

 

Está o carro guardado.

Bebé vai esquecendo.

A vida é p'ra quem

Continua vivendo...

 

E o carro de pau

É um carro que está

Guardado num sótão

Onde nada há...

 

 

Fernando Pessoa, s.d., Obra Poética e em Prosa.

POEMA PIAL

 

Casa Branca — Barreiro a Moita (Silêncio ou estação, à escolha do freguês)

 

Toda a gente que tem as mãos frias

Deve metê-las dentro das pias.

 

Pia número UM,

Para quem mexe as orelhas em jejum.

 

Pia número DOIS,

Para quem bebe bifes de bois.

 

Pia número TRÊS,

Para quem espirra só meia vez.

 

Pia número QUATRO,

Para quem manda as ventas ao teatro.

 

Pia número CINCO,

Para quem come a chave do trinco.

 

Pia número SEIS,

Para quem se penteia com bolos-reis.

 

Pia número SETE,

Para quem canta até que o telhado se derrete.

 

Pia número OITO,

Para quem parte nozes quando é afoito.

 

Pia número NOVE,

Para quem se parece com uma couve.

 

Pia número DEZ,

Para quem cola selos nas unhas dos pés.

 

E, como as mãos já não estão frias,

Tampa nas pias!

 

s.d.

Quadras ao Gosto Popular. Fernando Pessoa.  

 

IRONIA

 

 

Faz um a casa onde outro pôs a pedra.

O galego Colón, de Pontevedra,

Seguiu‑nos para onde nós não fomos.

Não vimos da nossa árvore esses pomos.

 

Um império ganhou para Castela,

Para si glória merecida — aquela

De um grande longe aos mares conquistado.

Mas não ganhou o tê-lo começado.

F. Pessoa, 1922

A noite desce, o calor soçobra um pouco.

A noite desce, o calor soçobra um pouco.

Estou lúcido como se nunca tivesse pensado

E tivesse raiz, ligação directa com a terra

Não esta espécie de ligação do sentido secundário chamado a vista,

A vista por onde me separo das coisas,

E m'aproximo das estrelas e de coisas distantes —

Erro: porque o distante não é o próximo,

E aproximá-lo é enganar-se.

Alberto Caeiro - 1-10-1917

...

Ah a frescura na face de não cumprir um dever!

Faltar é positivamente estar no campo!

Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!

Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.

Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,

Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não vinha.

Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.

Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.

É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria à mesma hora,

Deliberadamente à mesma hora...

Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.

É tão engraçada esta parte assistente da vida!

Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,

Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.


Álvaro de Campos

Às vezes tenho ideias felizes,

Às vezes tenho ideias, felizes,

Ideias subitamente felizes, em ideias

E nas palavras em que naturalmente se despejam...

 

Depois de escrever, leio...

Porque escrevi isto?

Onde fui buscar isto?

De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...

Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta

Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?...

 

Álvaro de Campos

No entardecer da terra

No entardecer da terra
O sopro do longo Outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão.

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
O vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

Fernando Pessoa, in Cancioneiro