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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

não me acordes

não me acordes

estou no lado de dentro

das pedras
no sítio húmido
da noite
nos interstícios da pele
ferida
no avesso do verso
adverso
não me acordes
mais
não me acordes
tanto

Américo Rodrigues
23/9/11

 

Foi ontem à tarde a apesentação do "acidente poético fatal" na BMEL. Foi tempo de amizades e aprendizagens. Foi tempo de ouvir e assimilar. Foi tempo de palavras. Essas entidades dotadas de vida própria e que nunca estão completas enquanto houver alguém que as aprecie e as tente desvendar. Como faz o Américo. E bem! 

Transcrevo acima o poema de que mais gosto (também eu!). Além de outros. 

Parabéns à poesia e ao autor.

 

 

[Quem tiver curiosidade - e vale a pena satisfazê-la - pode seguir a sugestão do próprio autor: 

"A partir de agora, o livro vai à sua vida. Vende-se, na Guarda, no Quiosque Moinho (ao lado deste Café Mondego), no centro da cidade. Pode também pedir-se por mail: americo.j.rodrigues@sapo.pt"]

Café do Molhe


Perguntavas-me 
(ou talvez não tenhas sido 
tu, mas só a ti 
naquele tempo eu ouvia) 

porquê a poesia, 
e não outra coisa qualquer: 
a filosofia, o futebol, alguma mulher? 
Eu não sabia 

que a resposta estava 
numa certa estrofe de 
um certo poema de 
Frei Luis de Léon que Poe 

(acho que era Poe) 
conhecia de cor, 
em castelhano e tudo. 
Porém se o soubesse 

de pouco me teria 
então servido, ou de nada. 
Porque estavas inclinada 
de um modo tão perfeito 

sobre a mesa 
e o meu coração batia 
tão infundadamente no teu peito 
sob a tua blusa acesa 

que tudo o que soubesse não o saberia. 
Hoje sei:escrevo 
contra aquilo de que me lembro, 
essa tarde parada, por exemplo. 

 

Manuel António Pina, "Nenhuma Palavra e Nenhuma Lembrança" (1999) 

Agora É

 

 

Agora é diferente
Tenho o teu nome o teu cheiro
A minha roupa de repente
ficou com o teu cheiro

Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos
lugar para o amor

Já não arranjamos vagar
para o amor agora
isto vai devagar
isto agora demora



Manuel António Pina
Poesia Reunida

Luar de Janeiro

Luar de janeiro,

Fria claridade

Á luz delle foi talvez

Que primeiro

A bocca dum português

Disse a palavra saudade...

Luar de platina,

Luar que allumia

Mas que não aquece,

Photographia

D'alegre menina

Que ha muitos annos já... envelhecesse.

Luar de janeiro,

O gelo tornado

Luminosidade...

Rosa sem cheiro,

Amor passado

De que ficasse apenas a amizade...

Luar das nevadas,

Algido e lindo,

Janellas fechadas,

Fechadas as portas,

E elle fulgindo,

Limpido e lindo,

Como boquinhas de creanças mortas,

Na morte geladas

-E ainda sorrindo...

Luar de janeiro,

Luzente candeia

De quem não tem nada,

-Nem o calor dum brazeiro,

Nem pão duro para a ceia,

Nem uma pobre morada...

Luar dos poetas e dos miseraveis,

Como se um laço estreito nos unisse,

São similhaveis

O nosso mau destino e o que tens...

De nós, da nossa dôr, a turba - ri-se

-E a ti, sagrado luar ... ladram-te os cães!
 

Augusto Gil, Luar de Janeiro (1909)

 

[Acabei de chegar da rua, regressando do meu local de trabalho, e, ao olhar para a beleza da LUA cheia, lembraram-me os versos do poeta e não resisti a transcrevê-los na sua grafia original de há 100 anos atrás. Com tanta beleza e recordação o frio agreste da meseta fica para segundo plano!!!!]

Fernando Pinto Ribeiro

cilício

amar
sem loucura nem pecado.
beijar com as asas
soerguidas
num voo orientado
através de trincheiras sucessivas.
não mais ficar parado
na curva do prazer
(hão-de explodir um dia em vão as feridas
do laço em que te abraço a Lúcifer).
tenha o desejo fugido à nostalgia
da amarra no cais ultrapassado
e viva nas marés do dia-a-dia
rendido
à viril filosofia
da onda que vai vem contra o rochedo.
guardar
a seiva do segredo
e o pólen da pele
nos lábios túmidos
hoje e sempre
fiel
ao beijo heróico
mortal e permanente
em que te aguardo
em que me encontre
frontal
total
e eternamente.

Fernando Pinto Ribeiro

(http://porosidade-eterea.blogspot.com/2009/02/fernando-pinto-ribeiro-1928-2009.html)

 

[1928 - 2009: Reconheço a minha ignorância sobre este autor, mas pelos vistos nasceu aqui pela cidade, embora tenha passado a maior parte da vida em Lisboa. Escrevia nos jornais e muitos dos seus poemas viraram letras de fados.]