Os navios existem e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios. Sem nenhum destino flutuam nas cidades, partem no vento, regressam nos rios.
Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas para o mar. Anoitece. Não há dúvida, anoitece. É preciso partir, é preciso ficar.
Os hospitais cobrem-se de cinza. Ondas de sombra quebram nas esquinas. Amo-te... E abrem-se janelas mostrando a brancura das cortinas.
As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas minhas curvas claras.
Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, e estas mãos noturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura.
E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens vivas, desenhadas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas.
Tudo era claro: céu, lábios, areias. O mar estava perto, Fremente de espumas. Corpos ou ondas: iam, vinham, iam, dóceis, leves, só alma e brancura. Felizes, cantam; serenos, dormem; despertos, amam, exaltam o silêncio. Tudo era claro, jovem, alado. O mar estava perto, puríssimo, doirado.
Eugénio de Andrade
Regressar, retomar, reviver: pós-férias!
Há que voltar a construir, a comunicar, a caminhar!
Passamos pelas coisas sem as ver, gastos, como animais envelhecidos: se alguém chama por nós não respondemos, se alguém nos pede amor não estremecemos, como frutos de sombra sem sabor, vamos caindo ao chão, apodrecidos.
Respiro o teu corpo:
sabe a lua-de-água
ao amanhecer,
sabe a cal molhada,
sabe a luz mordida,
sabe a brisa nua,
ao sangue dos rios,
sabe a rosa louca,
ao cair da noite
sabe a pedra amarga,
sabe à minha boca.
Eugénio de Andrade
Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto — não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em toda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara dei Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento. Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na tua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz. Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo? Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar. E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem nas feiras, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês — e que só ela, só ela vê.
Elas são as Mães, ignorantes da morte mas certas da sua ressurreição.
Essa mulher, a doce melancolia dos seus ombros, canta. O rumor da sua voz entra-me pelo sono, é muito antigo. Traz o cheiro acidulado da minha infância chapinhada ao sol. O corpo leve quase de vidro.