A (minha) aldeia
Quem chega do lado da cidade e vira à esquerda, depois de passar um leve outeiro começa a descer deixando, do seu lado direito, umas casas abandonadas. Quem as viu, brilhantes no esplendor de uma das famílias mais ricas da aldeia! Agora os telhados musgosos cheiram a solidão e abandono. Em contrapartida, a paisagem que se segue, descendo já em declive meio acentuado, é de parar um pouco e contemplar o pequeno vale onde escorre, em invernos mais rigorosos, um lento regato. (Há umas boas décadas atrás, impedia mesmo a passagem para a escola dos gaiatos em semanas de chuvadas intensas e persistentes.) Mas a vegetação que enquadra a vista é agradável e induz uma sensação de agrado moderado. Passadas umas casas, recentemente recuperadas, ao dobrar o cotovelo do caminho, vê-se a povoação aninhada no fundo dos lameiros do vale. Outrora férteis e bem aproveitadas veigas, agora pastos verdejantes alimentícios de vacas diversas em raças importadas que substituíram as turinas e as jarmelistas
As casas estão, a partir daí, semeadas aos lados das ruas caindo de repente sobre a lama que encharcava o caminho. De pedras velhas, gastas pelos anos e pelo feroz vento norte, fazem cara feia a quem chega, mas sorriem a quem veem todos os dias. Ariscas para uns, amáveis para outros, retribuem o bem que receberam ao longo dos séculos, embora sejam também o espelho de quem as habita e da sua peculiar maneira de ser.
Bate-se, de repente, ao fundo da descida, com o muro recuperado de uma habitação quase secular, guardiã da aldeia e dos seus medos escorregadios dos invernos rigorosos. Depois a rua desce e bifurca-se. Para baixo fica o chafariz velho que até secava no verão. E tinha um largo onde as brincadeiras de fim de tarde juntavam a garotada para as escondidas ou qualquer outra gaiatada que desanuviasse, quer da escola, quer dos trabalhos agrícolas pesados para aquelas colunas débeis. E havia ainda o pereiro com frutos doces e breves, atração das barrigas mais famintas nas manhãs quase frias de uns setembros pouco promissores. Lá para o fundo, os lameiros - cortados por uma quelha estreita, chamada na brincadeira dos abraços pois só cabia uma pessoa de cada vez - esperavam com o gado impaciente que a brincadeira não se prolongasse muito para poderem recuperar alguma erva para o dia seguinte. E quando a demora era persistente lá vinha o berro estridente a lembrar as obrigações familiares que a pouca idade fazia esquecer.
A outra rua crescia para as bandas do comboio, apitando ao longe nas tardes em que o vento soprava dos cumes anatómicos do Jarmelo. E, lá no fim, a outra quinta. Onde se precisavam braços para os duros trabalhos agrícolas, remunerados com pouco dinheiro e algum alimento que não chegava para matar a fome às barrigas numerosas das famílias da aldeia. Respirava fartura e as vacas e as ovelhas abundavam pelos campos. Depois vinha a descida para os lados do comboio: primeiro suave e a seguir mais acentuada terminando no ribeiro exíguo do fundo do vale. Seguiam-se as bardeiras onde os gados descansavam nas noites quentes de verão guardados pelos cães e pelos pastores abrigados nas choças.
Agora pouco resta desses tempos agrícolas e os prados que baptizaram a aldeia estão quase todos abandonados e das bardeiras só mesmo a lembrança. As giestas e os carrapiços dominaram os pastos e as paredes limitadoras desmoronam-se lentamente dando lugar ao caos.
J M
(Texto recuperado.)