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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

A (minha) aldeia


 



Quem chega do lado da cidade e vira à esquerda, depois de passar um leve outeiro começa a descer deixando, do seu lado direito, umas casas abandonadas. Quem as viu, brilhantes no esplendor de uma das famílias mais ricas da aldeia! Agora os telhados musgosos cheiram a solidão e abandono. Em contrapartida, a paisagem que se segue, descendo já em declive meio acentuado, é de parar um pouco e contemplar o pequeno vale onde escorre, em invernos mais rigorosos, um lento regato. (Há umas boas décadas atrás, impedia mesmo a passagem para a escola dos gaiatos em semanas de chuvadas intensas e persistentes.) Mas a vegetação que enquadra a vista é agradável e induz uma sensação de agrado moderado. Passadas umas casas, recentemente recuperadas, ao dobrar o cotovelo do caminho, vê-se a povoação aninhada no fundo dos lameiros do vale. Outrora férteis e bem aproveitadas veigas, agora pastos verdejantes alimentícios de vacas diversas em raças importadas que substituíram as turinas e as jarmelistas

As casas estão, a partir daí, semeadas aos lados das ruas caindo de repente sobre a lama que encharcava o caminho. De pedras velhas, gastas pelos anos e pelo feroz vento norte, fazem cara feia a quem chega, mas sorriem a quem veem todos os dias. Ariscas para uns, amáveis para outros, retribuem o bem que receberam ao longo dos séculos, embora sejam também o espelho de quem as habita e da sua peculiar maneira de ser.

Bate-se, de repente, ao fundo da descida, com o muro recuperado de uma habitação quase secular, guardiã da aldeia e dos seus medos escorregadios dos invernos rigorosos. Depois a rua desce e bifurca-se. Para baixo fica o chafariz velho que até secava no verão. E tinha um largo onde as brincadeiras de fim de tarde juntavam a garotada para as escondidas ou qualquer outra gaiatada que desanuviasse, quer da escola, quer dos trabalhos agrícolas pesados para aquelas colunas débeis. E havia ainda o pereiro com frutos doces e breves, atração das barrigas mais famintas nas manhãs quase frias de uns setembros pouco promissores. Lá para o fundo, os lameiros - cortados por uma quelha estreita, chamada na brincadeira dos abraços pois só cabia uma pessoa de cada vez - esperavam com o gado impaciente que a brincadeira não se prolongasse muito para poderem recuperar alguma erva para o dia seguinte. E quando a demora era persistente lá vinha o berro estridente a lembrar as obrigações familiares que a pouca idade fazia esquecer.

A outra rua crescia para as bandas do comboio, apitando ao longe nas tardes em que o vento soprava dos cumes anatómicos do Jarmelo. E, lá no fim, a outra quinta. Onde se precisavam braços para os duros trabalhos agrícolas, remunerados com pouco dinheiro e algum alimento que não chegava para matar a fome às barrigas numerosas das famílias da aldeia. Respirava fartura e as vacas e as ovelhas abundavam pelos campos. Depois vinha a descida para os lados do comboio: primeiro suave e a seguir mais acentuada terminando no ribeiro exíguo do fundo do vale. Seguiam-se as bardeiras onde os gados descansavam nas noites quentes de verão guardados pelos cães e pelos pastores abrigados nas choças.

Agora pouco resta desses tempos agrícolas e os prados que baptizaram a aldeia estão quase todos abandonados e das bardeiras só mesmo a lembrança. As giestas e os carrapiços dominaram os pastos e as paredes limitadoras desmoronam-se lentamente dando lugar ao caos.

 



J M

(Texto recuperado.)

Luar


 



- Preciso do teu espaço!

  Não o queres partilhar?

 



- Ofereço-te um abraço

  e um raio de luar!

 



- Preciso do teu carinho!

  Não mo queres dispensar?

 



- Anda, faz comigo o caminho!

  Levamos um raio de luar!

 



- Preciso da tua companhia!

  Não me queres aconchegar?

 



- Dou-te toda a alegria

  que há num raio de luar!

 



J M

Horaciana


 



Narra-me os dias nítidos

as horas transparentes de cor;

debaixo desta sombra frondosa

goza o dia intensamente.

 



Lê Horácio e modera-te

nos prazeres que as sombras afagam

e nos delírios consequentes.

 



Frui cada hora em si

abstraído do bulício diário

e aproveita cada momento

na sua plenitude.

 



Goza moderadamente

e assim terás a felicidade.

 



JM

Regresso


Regresso diariamente aos nossos passos



E encontro mais de cem mil pegadas

Revejo desta maneira variados espaços

Onde deixámos sensações gravadas.

 



Regresso e faço um roteiro melancólico

Mas nada encontro no silêncio ansiado

Porque afinal o silêncio é misantrópico

E nada resta do que foi experienciado.

 



Regresso em vão porque o deserto

Apoderou-se dos sentidos rejeitados:

Fica o desconsolo de ter estado perto.

 



Regresso porque o malfadado coração

Pensa que ainda é tempo, que há lados

Onde não morreu a esperança. Em vão!

 



JM

GAITA!


 



Isto é tudo uma gaita!



Quebra-se a gaita

fica-se sem nada:

 



nem música,

nem buracos,

nem notas,

 

nem dedos p’ra pôr nos buracos,

nem sopro p’ra dar as notas.

 



Afinal tudo depende da gaita.

 



J M

SER


 



Ser poeta não é ondular montanhas,

nem sequer pôr janelas na alma;

 



é abrir postigos à imaginação

subir às leves montanhas da mente

 



medir a esquisita intensidade

das palavras meticulosamente escolhidas.

 



J M

Esperança


A noite cai pálida e transparente

por detrás de uma vidraça de loucuras

onde os anjos brincam de crianças

e os homens de tristezas e venturas.

 



O homem das estrelas cai oblíquo

no paço das canções por inventar

e nas ruas da cidade o orvalho

cai por entre as gotículas de luar.

 



O sonho das crianças surge ingente

no ar aberto e limpo da madrugada

e sente-se pairar um quase - tudo

onde a satisfação surge realizada.

 



Um novo dia, nova primavera

assoma forte no branco alvorecer

e se as esperanças não forem vãs

o mundo vai voltar a amanhecer.

 



JM

...


Estranho-te no cansaço de seres

a permanente presença silenciosa

deitada na laje nua do pensamento

onde impávida e calma permaneces

nas ondas límpidas da tarde primaveril.

 



E se não estivesses? Se o teres

preferência de mim, já não fosse imperiosa

necessidade? Seria acaso um tormento?

 



Calma e impávida permaneces

alheia à vontade do meu corpo, natural …

 



(Oxalá assim seja.) E o teu desejo

te traga na vontade estranha de um beijo

roubado ao pôr do sol imponente

que a tarde primaveril desenha no poente.

 



JM

Inopinadamente


Inopinadamente

a tarde deixou-se dominar

pelos gatos selvagens;

 

inadvertidamente

a andorinha poisou

no resto do fio telefónico

que corta os ares dos subúrbios

da cidade descansada;

 



quando o gato saltou

apanhou apenas a cidade

pois a andorinha exímia

acordara a tempo

avisada pela chamada do destino

na inopinada linha telefónica.



 



J M