Reno e chuva
Colónia, 27 de Agosto de 1970.
RENO
Doiro feliz da Europa
Turvado de carvão e de poesia,
A correr sem cachões
Num lírico cenário sem mortórios,
A que mar de harmonia
Levas as pulsações
De tantos corações
Contraditórios?
Torga, Diário XI
Gerês, 27 de Agosto de 1942 — São cinco horas da manhã, mas não posso dormir. Choveu muito estes três dias, e um pobre ribeiro turístico que passa debaixo da janela do meu quarto canta pelas fragas fora que é um regalo ouvi-lo. Além disso estou numa daquelas noites de consciência universal — à minha escala, claro está — em que tudo me bate à porta e pede compreensão e amor. No repouso do leito, o mundo como que deixa de ter o seu cheiro fétido, e a vida chega à nossa razão, calma, clara, perene e grande. Coisas triviais erguem-se da sua mesquinhez, e é na morna quentura dos lençóis que, por exemplo, nos sabe inteiramente um largo passeio dado há cinco ou vinte anos, na companhia querida de alguém, ou na doce solidão dum desespero. O silêncio da noite clarifica pormenores que chega a parecer milagre que tivessem tanta pureza. O que eu vejo agora de quanto cuidei ver pelo dia adiante!
Torga, Diário II