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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

S. Martinho de Anta

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S. Martinho de Anta, 24 de Agosto de 1965 — Demorado exame de consciência no altar dos meus penates. Despi-me de todas as presunções alfabetas, e humildemente, na singela nudez dum filho pródigo, prestei-lhes contas da minha aventura humana, tão oposta à deles. Com o ouvido atento dos mortos, escutaram gravemente a meditação silenciosa da longa viagem que vai do rapazinho nado e criado nesta simplicidade rural ao homem complicado que sou, carregado de problemas e angústias. Recordei a voz ardilosa que me chamou, a força oculta que me impeliu, os escolhos que encontrei, as vezes que sucumbi, e justifiquei como pude a fé perdida, a visão laica da realidade, a esperança desencantada, a rebeldia teimosa, e o suor da rabiça trocado pelo da caneta.

  Mudos durante a maceração, mudos ficaram quando cheguei ao fim. Nem me louvavam, nem me censuravam. Fechavam-se numa prudente reserva. Galerianos das leivas e dos caminhos, a seguir as juntas e as recuas, atados de pés e mãos a um destino sem outra esperança que não fosse a do céu, como poderiam eles visionar qualquer desvio no destino da prole? E eu iniciara essa façanha. Que significava ela? Não sabiam ao certo. Por isso abstinham-se de qualquer juízo.

  Mas o sangue é o sangue. Tem singulares maneiras de falar e ouvir, quando corre em veias familiares. No auge do desespero, segredou-me que havia uma solidariedade subentendida entre os beneficiários do mesmo património somático. Negando-se a condenar, os lares taciturnos implicitamente aplaudiam. Davam-me, sem palavras, carta branca. E essa certeza bastou para que me levantasse do confessionário aliviado e confiante. Tornara-se viva no meu entendimento a certeza de que eles próprios não queriam que eu desistisse, que eu desanimasse, que eu fosse um elo de fraqueza na linha vital do clã, porque talvez as minhas heresias significassem o começo da sua póstuma redenção. O resgate de séculos de sofrimento e humilhações.

Torga, Diário X