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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Rescaldo

Coimbra, 26 de Fevereiro de 1945 — Com que então, grande passeio? — dizia-me hoje um amigo, com ar de censura amável. E não me foi possível fazê-lo compreender que atravessar serras e vales por estradas intransitáveis, dormir com percevejos em camas imundas, comer mal e a desoras, e tocar a carne viva da nossa miséria social, não é propriamente passear, mas sofrer. Verdade seja que não tinha grande empenho em convencê-lo disto. Quem é capaz hoje em dia de convencer alguém do apostolado natural da terra? Chamavam logo à coisa patriotismo, nacionalismo, eu sei lá que barbaridades! De modo que é melhor assim: passeio. As palavras odientas ficam em paz no vocabulário, e eu guardo nos olhos e no coração aquela pobre rapariga que um curandeiro matou numa aldeia de que já nem sei o nome, a pro-vocar-lhe um aborto, e o Zêzere obstinado e beirão a rilhar fragas ao luar, numa curva namorada, branca e lavada como um seio.