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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

O beijo


A tarde alarga-se preguiçosa



sob as sombras esparsas

das árvores; amorosa

a noite beijava

a fria nuvem

que descansada

escorregava

pelas horas do entardecer.

 



O beijo era a saudade

de repente, com a idade,

a crescer,

a crescer.

 



JM

Beijo


 



Rasgava o céu azul paulatinamente

a ânsia de mitigar o forte desejo

e no vento que derrapava esconsamente

ouviu-se nítido o estrondo de um beijo.

 



Tudo parou subita e repentinamente:

o vento, as aves, o rio e até o mar...

Seguiu-se um profundo silêncio; emergente

e cristalino desvendou-se o claro luar!

 



E as memórias desse estrondo povoaram-se

dos lábios húmidos e ridentes desses dois

e os corpos prazenteiros requebraram-se

 



numa dança sofregamente sensual ... pois

no íntimo de cada um sobressaltaram-se

as horas do presente entre um antes e um depois.

 



JM, A (im)perfeição dos dias.

...


Há um corpo de mulher

caído numa viela,

todos passam por ela

todos sem a ver.

 



um corpo de mulher

caído numa rua,

todos olham para ela

porque está nua.

 




Todos o ignoram,

mesmo conhecendo;

Todos o desprezam,

mesmo sabendo.

 




J M

Não


Não façam chorar as crianças.

Deixem florir as rosas,

não esmaguem as pétalas.

 



Não esmaguem as pétalas às rosas

que as crianças precisam de florir.



 

J M

CIDADE


 

                                                         a Ary dos Santos



 

A cidade é um chão              de culturas variadas

é fermento corado                na masseira de suores

e vida fertilizante                  poema de dias melhores

é pastor de muitas vidas    rebanho de mil cabeças

esperanças desfeitas         glórias bem apregoadas.

 



A cidade é projecção         da luta continuada

que nos dias renasce         na certeza do entardecer

porém ao alvorecer            quando o sol se levanta

há uma angústia latente   no coração dos homens.

 



A cidade é malícia              com bondade à mistura

é antro de solidão               ou bar/café de frescura;

lógica entrelaçada              nos esgares da paixão

onde perdura a noite          na aurora do coração.

 

J M

Os olhos

Os olhos das casas
espreitavam a praça deserta
e no lajedo do chão
as sombras esperavam uma aberta
para se apoderarem dela
 
mas ao fundo na janela
resvés com as pedras
uma labareda vigiando
esperava o momento de atacar
o resto de luz
 
e atento D. Sancho
a mão nervosa na espada
olha em ânsias a Rua Direita
tentando vislumbrar
a esbelta Ribeirinha
 
J M 05.04.2017
 
[Foto de Carlos Adaixo]
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A (minha) aldeia


 



Quem chega do lado da cidade e vira à esquerda, depois de passar um leve outeiro começa a descer deixando, do seu lado direito, umas casas abandonadas. Quem as viu, brilhantes no esplendor de uma das famílias mais ricas da aldeia! Agora os telhados musgosos cheiram a solidão e abandono. Em contrapartida, a paisagem que se segue, descendo já em declive meio acentuado, é de parar um pouco e contemplar o pequeno vale onde escorre, em invernos mais rigorosos, um lento regato. (Há umas boas décadas atrás, impedia mesmo a passagem para a escola dos gaiatos em semanas de chuvadas intensas e persistentes.) Mas a vegetação que enquadra a vista é agradável e induz uma sensação de agrado moderado. Passadas umas casas, recentemente recuperadas, ao dobrar o cotovelo do caminho, vê-se a povoação aninhada no fundo dos lameiros do vale. Outrora férteis e bem aproveitadas veigas, agora pastos verdejantes alimentícios de vacas diversas em raças importadas que substituíram as turinas e as jarmelistas

As casas estão, a partir daí, semeadas aos lados das ruas caindo de repente sobre a lama que encharcava o caminho. De pedras velhas, gastas pelos anos e pelo feroz vento norte, fazem cara feia a quem chega, mas sorriem a quem veem todos os dias. Ariscas para uns, amáveis para outros, retribuem o bem que receberam ao longo dos séculos, embora sejam também o espelho de quem as habita e da sua peculiar maneira de ser.

Bate-se, de repente, ao fundo da descida, com o muro recuperado de uma habitação quase secular, guardiã da aldeia e dos seus medos escorregadios dos invernos rigorosos. Depois a rua desce e bifurca-se. Para baixo fica o chafariz velho que até secava no verão. E tinha um largo onde as brincadeiras de fim de tarde juntavam a garotada para as escondidas ou qualquer outra gaiatada que desanuviasse, quer da escola, quer dos trabalhos agrícolas pesados para aquelas colunas débeis. E havia ainda o pereiro com frutos doces e breves, atração das barrigas mais famintas nas manhãs quase frias de uns setembros pouco promissores. Lá para o fundo, os lameiros - cortados por uma quelha estreita, chamada na brincadeira dos abraços pois só cabia uma pessoa de cada vez - esperavam com o gado impaciente que a brincadeira não se prolongasse muito para poderem recuperar alguma erva para o dia seguinte. E quando a demora era persistente lá vinha o berro estridente a lembrar as obrigações familiares que a pouca idade fazia esquecer.

A outra rua crescia para as bandas do comboio, apitando ao longe nas tardes em que o vento soprava dos cumes anatómicos do Jarmelo. E, lá no fim, a outra quinta. Onde se precisavam braços para os duros trabalhos agrícolas, remunerados com pouco dinheiro e algum alimento que não chegava para matar a fome às barrigas numerosas das famílias da aldeia. Respirava fartura e as vacas e as ovelhas abundavam pelos campos. Depois vinha a descida para os lados do comboio: primeiro suave e a seguir mais acentuada terminando no ribeiro exíguo do fundo do vale. Seguiam-se as bardeiras onde os gados descansavam nas noites quentes de verão guardados pelos cães e pelos pastores abrigados nas choças.

Agora pouco resta desses tempos agrícolas e os prados que baptizaram a aldeia estão quase todos abandonados e das bardeiras só mesmo a lembrança. As giestas e os carrapiços dominaram os pastos e as paredes limitadoras desmoronam-se lentamente dando lugar ao caos.

 



J M

(Texto recuperado.)

Luar


 



- Preciso do teu espaço!

  Não o queres partilhar?

 



- Ofereço-te um abraço

  e um raio de luar!

 



- Preciso do teu carinho!

  Não mo queres dispensar?

 



- Anda, faz comigo o caminho!

  Levamos um raio de luar!

 



- Preciso da tua companhia!

  Não me queres aconchegar?

 



- Dou-te toda a alegria

  que há num raio de luar!

 



J M

Horaciana


 



Narra-me os dias nítidos

as horas transparentes de cor;

debaixo desta sombra frondosa

goza o dia intensamente.

 



Lê Horácio e modera-te

nos prazeres que as sombras afagam

e nos delírios consequentes.

 



Frui cada hora em si

abstraído do bulício diário

e aproveita cada momento

na sua plenitude.

 



Goza moderadamente

e assim terás a felicidade.

 



JM

Regresso


Regresso diariamente aos nossos passos



E encontro mais de cem mil pegadas

Revejo desta maneira variados espaços

Onde deixámos sensações gravadas.

 



Regresso e faço um roteiro melancólico

Mas nada encontro no silêncio ansiado

Porque afinal o silêncio é misantrópico

E nada resta do que foi experienciado.

 



Regresso em vão porque o deserto

Apoderou-se dos sentidos rejeitados:

Fica o desconsolo de ter estado perto.

 



Regresso porque o malfadado coração

Pensa que ainda é tempo, que há lados

Onde não morreu a esperança. Em vão!

 



JM

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