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Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Ar da Guarda

"Livre não sou, mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino." Miguel Torga

Palavras


 



Tão grande a vastidão do silêncio!

 



Os olhos da noite abrigam-se atrás das palavras

e fecham-se!

 

Nada fica para dizer e a mudez instala-se entre nós.

Esperar o quê?

Esperar o vazio de ti.

 



Escutar o silêncio do deserto entre nós?

As palavras emigraram. Voltarão ainda um dia?

 



São precárias, mas a acidez de algumas

é desfeita pela doçura de outras.

E estas são mais fortes!

 



Esperança, minha irmã gémea, fica comigo!

 



JM

Tanto silêncio


 



Tanto silêncio, Deus meu!

 



Tudo emudeceu,

nem a terra nem o céu

emitem sinais de vida ...

 



é só serra árida, perdida

entre deserto e deserto



e a fonte aqui tão perto!

 



Quem me dera reavê-la

à luz serena da estrela

que brilha alta no céu.

 



Tanto silêncio, Deus meu!

 



JM

Nugae


 



Saio à rua

 

E no espesso nevoeiro

Entrevejo-te. Pareces-me nua.

Mas vista de mais perto

Entre as gotículas que joeiro

Finalmente acerto:

 



Não és tu, é a lua!

 



JM

O tempo ...


O tempo é destruidor,



rói lentamente a alma

e com tão manhosa calma

duma pérfida maneira

que nem sentimos a dor

de tal modo é sorrateira.

 



O tempo é tão corrosivo

passa tão silenciosamente

minando paulatinamente

o âmago do coração

que parece um abrasivo

provocando destruição.

 



E assim se vai morrendo

cada dia um pouco mais

sem darmos pelos sinais

que a vida vai enviando.

Tudo se anda perdendo.

A quem demos o comando?

 



 



JM

MÃE


Aqui, mergulhado nesta tarde primaveril, afagado pelas suaves brisas vespertinas, recordo a tua vivacidade e as tuas carícias, Mãe.



Os teus aromas a terra e a hortelã saciavam-nos os sentidos e as tuas mãos calosas, ao passar pelo rosto, eram mais macias que o veludo cálido da tua veste. A tua vivacidade arrastava-nos na voragem dos teus movimentos inquietos e sempre nos levava atrás de ti, seguindo-te as pisadas físicas ou psicológicas. Eras uma estrela vívida e brilhante, que nós sabíamos cadente, mas em que não queríamos pensar, porque te julgávamos eterna e perene – e, apesar de tudo, sê-lo-ás.

Hoje, a tua memória trai-te a cada passo e a tua vivacidade definha com as forças que os anos te consomem. Somos ainda nós, para ti, não os teus filhos, ou netos – a memória traiu-te mesmo! – mas alguém com quem gostas de estar, de passar alguns momentos – e tantas vezes a vida nos arrasta para longe e impede de estar mais um pouco contigo! Hoje vives fechada em ti, recordas outras vidas, às vezes só tuas, mas continuas a acariciar-nos com as tuas mãos delgadas e ásperas que, contudo, permanecem carinhosas e de veludo, porque são as tuas.

Mãe, as brisas primaveris continuarão a passar e os teus aromas estarão connosco!

 

(J M - 2009)

Cesárica
















Sentado na mesa do café devasso



Olho a paisagem vestida a verde

Extasiam-se-me os olhos no poente,

E revejo a tua Milady, ó Cesário Verde!

 



Sem desprimor para a airosa rapariga

Portuguesa de lei e bem elegante

Que passa simples e descontraída

No seu fato de treino desestressante.

 



Ao longe, as eólicas lutam desesperadas

Contra a força intensa do frio norte

E as árvores, nesta altura, desfolhadas

Agitam os ramos perdido já o porte.

 



E vêm-me à memória uns dias estivais

Cheios de emoções e passeio matutino

Intensos, secos, avessos a vendavais

Iludindo a força secreta do fatal destino.

 



Triste condição humana: efemeridade!

Tudo é passageiro e fugaz e inexorável!

Sensações enganadoras de felicidade!

Ilusões perdidas de uma vida: lamentável!

 



(Aquele sorriso entre mãe e filha

Terminando em sonora gargalhada,

Foi uma excelsa maravilha

Iluminando a tarde enevoada!)

 



JM











 





 
























 




 













Este vento ...


 



Este vento agreste de temporais

que buzina no lá fora continuamente

traz-me as lembranças invernais

bruscas e frias de antigamente.

 



As alegrias despreocupadas da infância

em manhãs com o quente da lareira

ou os contos nocturnos de errância

na voz paternal lesta e prazenteira.

 



Mas sempre, lá, nas frinchas do sobrado

assobiava desafiador e persistente

o vento sudoeste intenso e redobrado.

Terá por acaso algum assunto pendente?

 



JM

Flores brancas

 

Flores brancas tontas

ensaiam danças belas

na música do vento

 

invernal;

parece que angustiadas,

procuram um sítio para pousar

trazendo consigo estrelas

num bailado circular e infernal.

 

Mas a natureza receptiva

tecendo lençóis de alvura

no lugar dos negros barrocais

sempre criadora e construtiva

alumiará a nocturna negrura

com uma esplendorosa, bela e altiva

brancura espessa e ideal.

 

JM

Perda


 



A tarde alonga-se-me na saudade

De outras curtas tardes de visitas

Alonga-se-me no nada em que ficas

Sozinha para além da realidade

 



Na solidão de uma casa vazia

Onde te reinventa cada recanto

Onde as impressões indeléveis de alegria

Perduram a par de sentido pranto

 



Esses risos essas lágrimas esses gestos

Essas angústias esses beijos essas ternuras

Essas mãos calejadas esse olhar veemente

 



Para sempre estão impressos nesses restos

Que nos deixas e nas ânsias e amarguras

De não te ter mais mas de te ter eternamente.

 



JM

Desesperança















 



Essa criança esquelética e nua

que encontramos às vezes por aí,

chama-nos egoístas a mim e a ti

quando nos cruzamos com ela na rua!

 



O rosto ansioso,

a avidez do olhar,

as rugas da face,

a tristeza da pele,

atiram-nos pedidos

em apelos mudos

no sulco profundo

da sua voz sumida.

 



Suas mãos ósseas

rasgadas nos caixotes

e que no lixo sobrevivem,

levantam-se caladas

numa prece angustiante,

num apelo premente

que os humanos não ouvirão!

 



Criança! Agora apenas criança!

Mais tarde quiçá marginal,

mero mas impressivo sinal:

o mundo é sem-esperança!

 



J M